2/21/2008

Texto livre de fumo no país badalhoco

“Mas onde é que alguém já se viu ser maldito? Valha-nos Nossa Senhora. Gostar de ir parar à cadeia? Cruz credo! Encher o estômago com xaréus? Louvado seja Deus. (…) Vá de retro Satanás! Andar a pedir esmola? Deus l`acrescente.
Morte ao neofascismo que nos começa a pesar”. Ámen.”

Luiz Pacheco



Pouco se me dá rotular Luiz Pacheco como uma lata de salsichas – libertino, libertário, anarquista, abjeccionista, ou até, suinicultor de “uma orgia verborrágica que é própria da catilinária reles”, como sugeriu no “Expresso” João Pereira Coutinho, esse pedantantolas tótó que julga poder auscultar as doenças venéreas do mundo a partir das edições anotadas de Cambridge ou dos aforismos “dandys” e rabetas (ou panasca, se for politicamente mais correcto) de Oscar Wilde.
Quem não frequentou tascas, ovo cozido em sal, tintol a granel e nunca teve de cravar cinquenta paus para nada, é notoriamente manco da mais elementar cultura de humanidade - simples, bácora, e “catilinária-, estando impossibilitado de qualificar “obra literária”- que não é apenas o somatório de capítulos e de narrativa linear, como julga o incandescente plumitivo, que rezam as crónicas é da espécie auto-proclamada de provocadores que nos sobram neste atoleiros – a espécie de provocadores elegantes que faz furor entre yuppies analfabetos e liberalóides mal fodidas.

Uma frase bebedolas e “catilinária” de Luiz Pacheco contém uma humanidade mais feroz do que alguma vez esta fauna de criançolas bem na vida será capaz de produzir numa opus magnum de fabrico caseiro, burilada no permeio de uma garfada de risotto al funghi entre missionários do verbo concordar, ou nos seus seminários bolsistas-chupista de Cambridge onde se serve chá, Stuart Mill e caganças em forma de scones.
Para um “liberal” não está mal de ver.
O liberalismo esgota-se na soleira da negociata e do Estado, porque quando ao resto, terço na mão e Te Deum conservador na laringe.
A liberdade de um homem poder seguir o seu caminho, decidir o seu destino, essa de nada vale, se não cumprir o “cânone”, não for “elegante”,“sofisticado” ou excêntrico. Tecnicamente, o único provocador aceitável para JPC e comensais do risotto é o provocador “snob”.
O liberalismo, ou a liberdade de culto do individualismo parece exclusiva a essa casta educada. A liberdade vernácula, de tasca, essa já é cabotinismo.
Como diria Pacheco, e que tal umas deliciosas sandes de merda.

Mas sandes de merda é coisa que já não se serve nesta casa de pasto iofilizada em que se tornou Portugal.
Em Castelo Branco havia há uns anos um tasco que servia sandes de molho, com os resquícios da molhanga carnívora. A certas horas com o sobejo de trocos no bolso eram de estalo. Devidamente acompanhados por whisky à tampinha ou a olhómetro – sirva-me aí 100 escudos de whisky – e lá vinha o VAT 69 respingado com generosidade.
Isso era no tempo em que o Pacheco era vivo. Agora que vivemos no tempo dos Pereiras Coutinhos (os do capital e do barco de férias e os da escritinha cocker spanier- ladrar muito, morder nicles), já só há sandes plastificadas com rucola assexuada e salmão funcionário.
A tasca da serradura no chão e o papagaio asneirento, essas são lembradura coevas do tempo dos nossos avós. A serradura higiénica para absorver os entornances de tinto tremeliques “delirus tremens foi substituída por produtos de higiene – luvinhas de borracha, lixívias, super-pops. “Odeio este tempo detergente”, dizia Ruy Belo, e agora que o detergente se tornou uma arma de destruição maciça dos maus costumes?
E agora que sob os auspícios de sua eminência Sócrates, dos seus sacristãos Serrasqueiros, e da STASI armada do politicamente correcto (a ASAE) levamos este país para uma espécie de RDA de costumes.
Agora que andamos limpinhos, caladinhos e frequentamos mais ginásios de musculação do que tascas, e agora?


Agora, gostaria de convidar o sr. Sócrates, o Sr. Sarrasqueiro e o Sr.Nunes, o sheriff da ASAE de bigode à Wyatt Earp que tem como única qualidade apreciável o facto de fumar cigarrilhas e frequentar casinos (ainda há salvação para ele); gostava de os convidar a ir a um bairro operário para almoçar uma refeição económica a 5 euros – sopa, prato, sobremesa, café e com sorte um bagacito. E depois, em cavaqueira digestiva gostava de os ver perguntar ao tasqueiro de avental besuntado de fritos como é que ele consegue praticar aqueles preços. E depois, em alegre camaradagem operária (raios afinal somos ou não somos socialistas) perguntar ao brutamontes do macacão com nódoas de óleo, se ele não se importa do bife com ovo a cavalo não ter estagiado numa câmara frigorífica topo de gama, afinal o facto de levar para casa 500 euros por mês não é desculpa para ter de almoçar sem condições de higiene.
Já não me atrevia a convidar o Sr. Sócrates a vir ao seu distrito eleitoral, afinal tem um banquete com a sra. Ângela Merckl para discutir o futuro da Europa, mas o Sr. Serrasqueiro, que já foi deputado do distrito, aposto que arranja um tempinho para ir ver as velhas de Valverde fazer dois quilómetros a pé para irem comprar umas latas de atum e de feijões pequenos ao Carvalhal, já que os senhores de crachás e coletes à Balada de Hill Street fecharam todas as vendas imundas e conspurcadas de Valverde que há 30 anos vendiam desinterias, bactérias e intoxicações alimentares ao ignaro povo, sem que esta soltasse queixume.

Atrevia-me a um sonoro bardamerda, se não estivesse incerto das consequências nefastas que isso podia ter para a minha conta bancária se o desabafo chegasse às orelhinhas selectivas da sra. Edite Estrela e do juiz da ERC (Entidade Reguladora da Comunicação Social), dois burocratas a soldo do Governo mais orwelliano com que já tive oportunidade de privar.
Mas como isto é um mero ópusculo sem pretensões libertárias, talvez me escape de estagiar numa penitenciária correctiva, ainda por cima ao que tudo indica, parece que por lá, dar um caldo de heroína é possível. Fumar nem por isso.
Ora, estando eu preso, a fumar um cigarrito na minha cela, chegava o guarda e dizia – é expressamente proibido fumar! (não basta ser proibido, é preciso ser expressamente).Resposta previsível: – E o que é que o meu caro senhor se propõe fazer, talvez prender-me?
Melhor que isto só a personagem de João César Monteiro, o réu João de Deus, quando instigado pelo juiz de toga a levantar-se, respondeu laconicamente – levante-se você, seu filho da puta!
Mas nós cá neste rebanho só balimos quando somos nós as ovelhas negras, apontadas a dedo, tresmalhadas.
Quando toca aos outros, encolhemos os ombros com uma solidariedade falsa de ufa que alívio. Quando nos toca a nós, bufamos, escrevemos artigalhadas em blogues e nos jornais, coceamos, marramos, mas nos finalmente ficamos mais quietos do que um boi de estábulo à espera da manja ou do cutelo.
Somos uns valentões de garganta e uns cobardolas que nos levantamos com respeitinho, que tememos os bófias, os padrecos e os “ayatholas” do politicamente funesto. Somos, afinal uns mansos à espera que a manja chegue plastificada e desbacterizada antes do cutelo.
O país do Sr. Sócrates, paladino do défice e do choque tecnológico às custas do trabalho forçado dos nossos impostos é um país tão moderninho, asseado e limpinho. É um país de sapato italiano e peúga rota, que na sua pelintrice se arma ao pingarelho com o vanguardismo sanitário na lapela e o desemprego e a pobreza nos cueiros. Um país limpinho, onde se faz jogging na segunda circular a levar com os escapes venenosos, onde se come em restaurantes saudáveis a 15 euros – salada+batido+fruta tudo embrulhado em plástico-, e onde vamos, provavelmente morrer cheios de saúde e impolutos, aos 98 anos, em hospitais que já não há, em lares de entulho pré-morte e em excursões de turismo sénior às obras faraónicas do aeroporto de Alcochete.
Até dá gosto viver neste país limpinho, onde se gastam milhões com uma Entidade Reguladora da Comunicação Social, em aparatosas operações STOP de bófias de passa-montanhas e shot gun a vigiar esses criminosos automobilistas, em câmaras de televigilância em cada esquina, e numa agência de segurança alimentar.
Tudo isto num país onde quem vigia a liberdade de imprensa tem proporcionalmente mais meios do que vigia a corrupção. Tudo isto num país onde se passa fomeca e onde a única verdadeira agência de segurança alimentar se chama Banco Alimentar Contra a Fome. Tudo isto num país asseadinho na montra e badalhoco até dizer chega na manápula do poder.
O Baptista Bastos que tem bom nariz para a coisa, diz que anda para aí um cheirinho a fascismo. Eu cá por mim é um pivete que tresanda mais que a celulose de Vila Velha. O que vale é que vem aí o Carnaval, e pode ser que me vendem umas bombinhas mais potentes não confiscadas pela ASAE.
Ou isso, ou confiar na profecia do Conde de Abranhos e esperar “Este governo não cairá porque não é um edifício, sairá com benzina porque é uma nódoa".

PS: Era para publicar no JF, mas depois não foi porque não me apeteceu cortar, fica aqui, para o arquivinho

1 comentário:

Mar disse...

Mesmo no arquivinho, serviu os propósitos. Há quem o leia e se releia.
"(raios afinal somos ou não somos socialistas)" devia estar escrito em todos os espelhos para onde os ilustres membros do Governo olham enquanto ensaiam os discursos.
Um texto fantástico, uma crítica social refinada, agudíssima e cheia de humor. :-)