2/15/2008

Desculpem lá qualquer coisinha


PODER CEGO
"Poder Cego" de Rudolf Schlichter, 1937, Berlinische Galerie
e patente ao público na exposição "Arte degenerada" promovida pelo partido Nazi
Fulgurante serão informativo de Mário Crespo, ontem na SIC-Notícias. O único genuíno “ancor man” cá do condado portucalense ontem parecia determinado em dar razão aos seus detractores que não lhe suportam o tom intimista, ligeiramente cabotino e um tudo nada xéxé. Eu cá que aprecio o estilo, tenho de reconhecer que ontem foi mau dia para o bom do Crespo.
Primeiro, uma entrevista a Dalila Rodrigues, a curadora do Museu de Arte Antiga que foi banida pela ministra entretanto também banida. O pretexto, o livro que a senhora escreveu sobre o pintor Grão Vasco a convite da editora de Zita Seabra. A conversa de cácárácá, queque e afectada, chegou ao ponto de Mário Crespo perguntar à senhora como lhe corre a vida, e ela explicar longamente que vai a Viseu de comboio, mas leva o portátil para trabalhar, e que em Viseu tem uns amigos à espera que a levam de carro ao Museu. Ficamos a saber que é bom ter amigos em Viseu, e também na Casa da Música, onde a ex-curadora da Arte Antiga vai coordenar o departamento de marketing e comunicação. Ora aí está uma vibrante nota pessoal que me faz desconfiar que afinal a ministra até tinha as suas razões. É que a personagem é de uma candura insuportável, quase bucólica, ou seja uma sonsa. Eu cá se fosse ministro, não queria nenhuma falsa sonsa a dirigir-me um museu. Mas a sonsa afectada fez as delícias de Mário Crespo que só lhe faltava escorrer baba com tão iluminada sapiência sobre a arte de apanhar comboios para Viseu e trabalhar no portátil durante a viagem. Foi um verdadeiro momento barroco de televisão por cabo.

Pouco depois, na habitual rubrica frente-a-frente, Pedro Passos Coelho e Joana Amaral Dias, discorriam com graciosidade sobre os temas da actualidade. Eles representam uma nova geração de políticos, usam palavras caras, expõem com firmeza, ordenam argumentos com a precisão de uma folha Excel, mas são de um modo geral tão pertinentes como uma gaita-de-foles e tão imprevisíveis como uma máquina de calcular.
Convidados a comentar a decisão do Governo australiano em pedir desculpa aos aborígenes pela opressão e segregação a que foram submetidos durante séculos, os nossos encantadores comentadores, aplaudiram com cortesia a justa reparação histórica.

O delírio seguiu-se, quando Mário Crespo lhes perguntou se haveria razões históricas para os portugueses pedirem desculpa aos povos colonizados.
Ora, para Pedro Passos Coelho, os pecadilhos históricos dos portugueses são apenas pequenas manchas curriculares, que ainda assim teriam de ser vistos à luz do contexto histórico e da época em que se vivia. Uma conveniente leitura que oblitera por completo os brutais genocídios que os portugueses perpetraram, por exemplo no Oriente, passando a fio de espada cidades inteiras que não se vergavam aos seus cupidescos interesses de mercearia. Isto já para não falar do Brasil, onde deixamos como legado uma língua bem adaptada ao bossa nova e o manejo da velha arte da corrupção, cultivada desde que D. Afonso Henriques pagava bulas papais, e que os Petistas de Lula adaptaram às necessidades de tesouraria local.

Mas, o momento mais patético do serão televisivo estava para vir. Joana Amaral Dia, no seu delicioso estilo disléxico e zangado com as injustiças do mundo, afirmou que a contextualização histórica não pode apagar as atrocidades cometidas pelos impérios coloniais, porque se assim fosse “Aushwitz teria de ser contextualizado com a sua época.” Para a beldade mais televisiva da esquerda-fashion, os valores humanos são absolutos, eternos e estão inscritos no livro de código da humanidade desde que o austrolopitecus se levantou para desentorpecer as pernas.
Ora, de acordo com esta visão de escol, condigna com a sandice politicamente correcta desta esquerda melífula, todos os impérios coloniais deviam pedir desculpa aos povos que humilharam e oprimiram. Ora, este notável precedente, obrigaria à mais longa sessão de “mea culpa” e salamaleques da história da assembleia-geral da ONU. Vejamos então uma pequena amostra:

- O embaixador italiano levanta-se e pede desculpa aos povos subjugados e massacrados pelas legiões romanas.
- O embaixador macedónio levanta-se e escusa-se pelos horrores de guerra infligidos por Alexandre o Grande aos seus adversários.
- O embaixador do Egipto levanta-se e pede desculpa pelos excessos cometidos pelas tropas do Faraó no Vale do Nilo.
- O embaixador da Argélia levanta-se para pedir desculpa dos excessos das legiões berberes no Norte de África e na Europa, mas só depois do embaixador francês pedir desculpas pela colonização.
- O embaixador francês aceita, e pede desculpas pelo terror das invasões napoleónicas, mas não sem antes exigir uma retratação histórica aos ingleses aos espanhóis e claro, aos alemães pelas invasões e ataques à sua soberania.
- Os espanhóis estão dispostos a pedir desculpa aos portugueses, aos mexicanos, aos índios do Paraguai e a todas as suas antigas ex-colónias. Mas em compensação, pedem que todos os povos árabes e muçulmanos que contribuíram para a jihad e a ocupação da Espanha católica se penitenciem pelos seus morticínios.
- Os portugueses aceitam pedir desculpas aos marroquinos, por Ceuta e Tânger, aos povos da Índia e do Extremo Oriente, aos brasileiros, aos timorenses, às antigas colónias africanas, e até à Madeira e aos Açores, territórios selvaticamente colonizados. Mas exigem desculpas públicas dos italianos, dos descendentes dos godos, visigodos, dos espanhóis, dos povos descendentes de Saladino e dos ingleses por causa da vergonha do ultimato.
- Os ingleses pedem desculpa a toda a Comonwealth, aos EUA, à Índia, e à China, ou seja, a meio mundo.
- Os EUA, como de costume não aceitam pedir desculpas a meio mundo, por terem exportado a democracia e libertado povos, mas admitem ter sido um pouco coercivos com os mexicanos e com alguns países do seu “quintal” latino-americano.
- A Índia, por seu turno, desculpa-se das atrocidades cometidas ao longo de séculos pelos mais sanguinários rajá, marajás, que esmagavam com tropa de elefantes qualquer formiga rebelde.
- O Japão pede desculpa à China, e a meio pacífico Sul.
- A China pede desculpa ao Japão, a Taiwan e a outro meio mundo.
- A Coreia do Norte pede desculpa à Coreia do Sul, a Coreia do Sul retribui amavelmente.
- A Rússia pede desculpa a toda a gente, mas pede reconhecimento pela barbárie napoleónica e nazi.
- A Polónia aceita todas as desculpas que lhe são entregues, e pede desculpa às repúblicas bálticas por umas invasõezinhas mais funestas.
- Por fim o homem das cavernas pede desculpa por ter utilizado pela primeira vez um sílex na cabeça do seu vizinho, para lhe ficar com a pele e com a mulher.

Ora, Joana Amaral Dias, defende que a humanidade expie os seus pecados passados. Que se penitencie pela atrocidades e que venere os tais valores morais e humanos de que ela é zelosa defensora. Acontece que tais valores de que ela tão confortavelmente beneficia na sua vida mundana e bem pensante, foram erguidos sobre milhões de ossadas, rios de sangue, incontáveis gritos de terror, atrocidades e genocídios, de que nenhuma parcela do globo, país ou tribo está isenta.
Pedir desculpas pelo passado é apenas um fraco tranquilizante para a nossa atormentada consciência histórica.
Mais do que pedir desculpas pelo passado o que seria bom era evitar que o passado se repita, como acontece todos os dias no Darfur, no Iraque, na Palestina e até na nossa rua, ou em tantos outros locais do globo, onde o terror e a violência do homem sobre o homem continuam a ignorar os altos valores morais sobre os quais a menina Joana ergue a santificada visão de humanidade.
A origem do mal não está nos impérios coloniais, nem sequer no capitalismo global. A origem do mal está, como sempre esteve, no próprio homem, na sua atracção fatal pelo poder e pela violência, para submeter os outros homens ao seu domínio ou ao seu pensamento. E neste caso, o bacteriologicamente puro totalitarismo moral que defende Joana Amaral Cardoso será a prazo tão ameaçador para a humanidade, como foram as teses nacional-socialistas de “Mein Kampf”.

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