3/10/2006

História improvável das coisas - O gelo


A invenção do gelo é posterior ao primeiro degelo.
Querida se fores ao frigorífico, traz-me duas pedrinhas de gelo para o meu whisky, disse Elias na primeira parte do Liverpool-Benfica





A invenção do gelo de fabrico humano é muito posterior à Idade do Gelo propriamente dita, mas tem uma ligação material e vocabular com essa época dominada por brontossauros e mamutes.
De acordo com Sant Glassé, freire dominicano da Abadia de Cluny, conhecido no seu tempo por ter largos tufos de pêlo no nariz, a produção humana de gelo deve-se a um cavaleiro cruzado bretão, Filipe Papin de Boutton que numa reunião de antigos combatentes da primeira cruzada no seu castelo nas Ardenas, onde o vinho, as cervejas e licores jorravam com abundância, bem como histórias de saques, violações e mutilações várias, terá dito para o seu velho confrade Ernesto Pepino de Couvette:
– Tu bebes que nem um mamute, meu bom Pepino, mas a mim não me sabe o whisky com este ardor que me arranha o esófago, estava mesmo precisado era de umas pedrinhas de gelo.
Fez-se um frio e sepulcral silêncio entre a plateia, especialmente entre os parafernaleiros irlandeses, para quem o whisky era bebida pura, sagrada e imprópria de ser misturada com água ou gelo.
Pepino de Couvette, homem astuto e letrado em Roma, temendo a eclosão de um conflito diplomático entre irlandeses e bretões, decidiu, com a discrição que é apanágio de diplomatas e de espanadores, satisfazer o desejo do seu amigo.
Mandou o seu mestre falcoeiro decepar os dedos do tocador de harpa com um punhal visigodo que herdara de uma falecida tia da Alsácia, chamada Dona Lorena.
O mestre falcoeiro cumpriu friamente a ordem e retirou dos dedos decepados quatro dedais, que encheu de água e colocou no varandim exterior do Castelo de Pepino de Couvette. Como fazia um frio bretão de rachar nozes renitentes, passada uma hora, os quatro dedais continham água em finos cristais gelados, que Pepino colocou amavelmente na taça de Santo Graal (dizia-se) de Papin de Boutton, ao que este respondeu com as célebres palavras:
- Com quatro pedrinhas de gelo, escorrega muito melhor!
Para evitar reacções alérgicas dos irlandeses continuou a mandar servir-lhes cerveja e whisky em doses pantagruélicas, única forma, segundo a ciência diplomática vigente na época, de apaziguar os fogosos e habitualmente exaltados ânimos celtas.
Com astúcia e frieza, Pierre de Couvette, acabava de inventar o gelo para consumo mundano e social. Um verdadeiro avanço civilizacional, só comparável à massificação da colher de chá.

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