6/01/2004

Contos Paragráficos IV

Al we ever wanted was everything
“Vitalis é uma água leve, pura e naturalmente equilibrado em minerais.”
Bebi uma golada e passou-me a febre do ouro.
Pude então escutar o meu velho disco dos Bahaus.
Al we ever got was gold


Desconto criminal
Uma tabuleta à porta daquele tribunal anunciava uma campanha de descontos:
“Homícidio premiditado – 10%”
“Assédio sexual no local de trabalho – 20%”
“Condução sob efeito do álcool – 40%”
“Crimes contra a humanidade – 90%”
“Penas iguais ou superiores a prisão perpétua – 100%”
“Fogo posto – 30%”
“Violação de velhinhas – 50%”
“Roubo de bicicletas – 5%”
“Fraude eleitoral – 40%”
“Ir ao cú a meninos – 100%”
A campanha de saldos judiciais foi um sucesso e o Ministro da Justiça foi condecorado e ofereceu a todos os juízes uma garrafinha de aguardente de pera, para se embebedarem com os meirinhos, fora do horário laboral.

O homem que engolia tralha
Começou por uma dieta baseada em sapos, que aliás se servem no refeitório da maioria dos locais de trabalho.
Rapidamente começou a engolir objectos. Para entrada um cabide, uns clipes ao ajillho e uns teclados de cabidela. Em casa, para destemperar, engolia a seco o elevador com o vizinho lá dentro, (coronel reformado de bengala e condecorações a granel.)
Para sobremesa engolia uma tábua de passar a ferro, salteada com um televisor Blaupunkt com ecrã de plasma. Era um funcionário bastante digestivo.
Entretanto, os sapos andavam dopados a Alka Seltzer e a conspirar com o director de recursos humanos para mudar a ementa do refeitório daquela multinacional.

Cometa na alheta
O cometa descrevia uma rota perigosa para a terra. A terra arrotou a camadas de ozono e desviou o cometa para a quinta casa do caralho.


Saladinha de mamão

O director daquela escola de alta cozinha do liceu francês cofiou o bigodinho retorcido e em flautulência grave disse: “Nunca confundir uma salada de mamão com uma mamada no salão”.
As criadinhas francesas não evitaram um risinho abafado, adivinhando já as iguarias que o futuro lhes reservava.

Figo maduro
D. Estroninho de Bourboun agachou-se debaixo de uma figueira secular, alçou as longas vestes dominicanas e iniciou uma cruzada escatológica. Um serraceno que por ali passava a trote, em puro sangue árabe, riu entre dentes
– Cão cristão, foram os figos quentes que te caíram mal.
Séculos mais tarde ali foi plantado o aeroporto de Figo maduro.

Colar assassino
O colar apertou a jugular da marquesa, asfixiando-a até à morte. O escândalo foi abafado no porta-jóias e na reunião de partilhas daquela aristocrática família.

O elevador zen
Aquele elevador vivia uma crise existencial depois de ler as obras completas de Jean-Paul Sarte. Quando subia, elevava-se em angústias. Quando descia, deprimia-se em hesitaçõe. Depois de consultar um oráculo, decidiu-se a estancar no rés-de-chão, para dali não mais sair.
Sem elevador, o pianista frustrado do 5º C, bebeu uma garrafa de anis e atirou-se da janela, despenhando-se no saguão. Aquele prédio vivia finalmente numa cordata paz imóvel.

O descanso da borboleta
A borboleta decidiu comprar um colchão Mola Flex, colocou as asas no prego e passou o resto da vida recostada no colchão, desfolhando revistas cor de rosa, vivendo as recordações de um passado faustoso.


O homem sem voz

O locutor perdeu a voz, em compensação ganhou a vida.

Relógio de sol a sol
O sol prosseguia a sua lenta marcha, indiferente ao relógio que continuava a dar horas.

À espera do amor
Beijaram-se, primeiro com ternura e lábios quentes de carícias, depois vorazmente com sofreguidão de carne.
Calaram os rostos e acenderam o silêncio, ficaram sentados no tabuleiro da ponte à espera de melhores dias para o amor.

Passarinho na brisa
O passarinho projectou-se suicida no pára-brisas daquele carro topo-de-gama de uma marca alemã de prestígio. Um som de ossos estaladiços interrompeu o som do subwoofer poderoso do “hi-fi” que fazia parte do equipamento de série daquele bólide. Friamente, o chauffer accionou o limpa-pára brisas, varrendo as penas, o sangue e os restos mortais do pássaro. O PDG que seguia no banco de trás ergueu o sobrolho inquisidor da aresta do Financial Times, e pigarreou as résteas de Monte Cristo que lhe irritavam o esófago mandão.

Faz-me um bico
Obviamente demito-me, disse despeitado velho fogão de bicos, quando viu entrar na cozinha o novo e reluzente micro-ondas, comprado nas últimas promoções do Intermarché

Deslocação do ar
O ar deslocou-se, mas o homem-espantalho, esse permaneceu imóvel.

Polivalente e imortal
O Professor de Filosofia da C+S da Quarteira apresentou o orador seguinte daquele sarau de poesia e pancadaria que se realizava no pavilhão gimnodesportivo do Imortal de Albufeira.
Sebastião D`Alma, insigne poeta, pensador, pintor, escultor e bêbado.
_Não necessariamente por essa ordem::: apresentou-se aquele venerando alcólatra com inclinação poética.


Gramar a gramática
Colocar um i antes do . ou um chapéu no avo, não é necessariamente sintoma de um bom domínio da gramática.
Aliás há quem veja ::: a dobrar, Pontos de ! sem ão no fim. Ou um . amantizado com uma , e nem por isso deixe de viver na idade dos ??? ês.
E o que dizer das “ que nascem das árvores chamadas “seiras, e dos escritores que deixam cair os ( ) na lama, e dos chavões que são os maridos das }. E ainda me vêem com onomatopeias e falinhas mansas, os embusteiros. Aos farsantes da pontuação, metia-lhes um / ão pelo rabinho a dentro. Ou asfixiava-os com o um endredao de ~tils.
A gramatologia a quem a trabalha.

Terapia pronta
- Dói-me a gramática !
Queixou-se o menino Julinho.
- Bochecha com o prontuário – aconselhou a professora.

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