11/21/2003

Loja de electrodomésticos VII

Da grafonola...com amor

Subitamente, a grafonola estrepidou num arranhar de vinil antigo, saltitando entre os agudos de uma voz lamuriosa que se afogava lentamente num Mississipi em cheia transbordante de bourbon mal destilado do suor a gotas de sangue negro.

Um blues. Um genuíno blues - lacrimejante e estóico rythm&blues em dueto de voz pastosa a harmónica. Voz forjada no gospel de Praise the Lord de matiné vibrando das cordas vocais lubrificadas pelo bourbon, embutido em goladas sôfregas na antecipação ao chicote e à corda que baloiça no salgueiro, ensaiado em jeito predador o nó de enlace no pescoço trémulo e nodoso.

Um lento embalar de pás do Mississipi Queen, a barcarola melodiosa do Poker de 5 ases de mão, manga e derradeira Derringer tira-teimas.
A pianola desafinada e charuto mastigado.
A grafonola que desperta de uma hibernação empoeirada pelo esquecimento, num aroma de pólvora gasta em corpos tombados com orifícios largos do calibre da bala do Colt 45.
Memórias de Baton Rouge, Bataclan e folhos das saias coloridas, perfumadas pelo aroma do desejo bruto e carnal com manchas de champagne seco.

Ao esturgir em blues velho e saudoso ou valsa harmónica de genealogia austríaca-decadente, a grafonola não disfarça um tom de melancolia nostálgica, com a recordação dos dias felizes, das festas e melodias antigas, dos flirts do jovem e emplumado tenente de cavalaria e duquesa carente de sabre de cavalaria, solidamente casada com banqueiro impotente, pelo menos para satisfazer os apetites vulcânicos de vulva balzaquiana.

Enfim the good old days, a que a grafonola emprestou brilho, orquestra e alma, sem nunca pronunciar um queixume, um esgar aborrecido ou reivindicativo silêncio.

De agulha pronta para o serviço de sulcar as fendas do vinil em extracção do minério sonoro, escavando ritmos, swingando no prato dos desejos, modas e je ne sais quois de estúpida futilidade mundana.

Estava a grafonola absorta no seu rendilhado de recordações, quando as mãos felpudas e duras de ouvido do funcionário da empresa de mudanças a calou abruptamente.

A velha grafonola foi deposta do seu altar sombrio do sotão da casa da bisavó Maggie - Lady Marguerite Ducroix, terceira duquesa de Louisville, que viveu até aos 98 anos, enterrando três maridos - o primeiro um banqueiro que lhe garantiu fortuna, emprestou nome e status, mas lhe deixou o leito vazio e seco.

O segundo marido, um garboso tenente de sabre em riste, galanteador e bem dançante, que lhe derreteu fortuna nos casinos flutuantes e nas coquettes francesas, mas que lhe sustentou os caprichos da carne adormecida e da volúpia mal contida nos espartilhos apertados nos seios da mulher de trinta anos.

Uma paixão intempestiva e fugaz, cujo único sobrevivente à laia de testemunho, foi o filho gerado em bastardia de feno de cavalariça, precisamente um ano antes do jovem tenente se libertar das algemas do matrimónio, definitivamente, numa rixa de jogo, cujo derradeiro bluff foi desmascarado com três punhaladas cravadas no coração fogoso do oitavo de cavalaria, que relinchou num sombrio sorriso mortal.

A bisavó Maggie nunca mais rompeu os grilhões daquela paixão nefasta, cuja memória a ostracizou numa existência despojada de moral e afecto, impelindo-a para uma vida libertina, errante entre postíbulos de portos imundo e lençóis conspurcados de mineiros grosseiros e ávidos de ouro e amor, ou de baleeiros vorazes, de arpoadas na carne tenra e indiferente de uma mulher que se entregava em habeas corpus, como um sacrifício num altar de esperma e vazio.

Assim viveu Lady Ducroix numa deambulação pecaminosa até que um Pregador Evangelista, a soldo do Senhor, a resgatou das garras de Jezebel, para a tornar esposa devota e beata, perfilhando-lhe Thomas, o rebento bastardo e bravio, que entretanto crescera e se enrobustecera como uma hera selvagem que trepa pelos alvos muros da vida - indomável e dispersiva - e calcorreara mundo, fundara numerosa prol da qual descendo.

A grafonola, essa, acompanhou a saga da família Ducroix e foi companhia fiel da bisavó Maggie até aos últimos dias da sua vida, em que se embalava mornamente na velha cadeira de balouço, de olhos semi - cerrados pelo punho dócil do sol que atravessava as pálidas frestas da persiana.

É assim que me recordo da bisavó Maggie, de face esquálida e sulcada pelos vincos da vida amarga, balouçando-se na sua velha palhinhas com a mesma graça com que valseava corações de jovens tenentes.
Escutava horas a fio os seus velhos discos de blues, valsas austríacas, música cajun e melodias sacras, sopradas em canto gregoriano, numa interessante mescla de estilos ecuménicos.

Foi ali que soprou o derradeiro sorriso enlevado, embalada no sono eterno pela flauta mágica de Mozart.
Como dizia com bonomínia o avô Thomas, uma família é um conjunto de indivíduos unidos por laços de sangue e divididos por questões de dinheiro.
Foi essa a má sorte da grafonola, que calhou em lotaria de partilha ao meu tio James Ducroix, um estouvado lunático que coleccionava borboletas e se enfrascava como larva sedenta em jarras de whisky, e que se apressou a desfazer-se da grafonola que trocou por um tabuleiro de borboletas afegãs crucificadas em bailado estático de natureza morta.
A tarde das facas longas da reunião familiar para as partilhas foi a última vez que vi a grafonola, carregada com corpulenta indiferença no colo do empregado da empresa de mudanças.

Ainda hoje, quando olho para a minha aparelhagem de alta fidelidade Pionner, com colunas dolby surround soprando um som certinho e normalizado, me recordo da titubeante e caprichosa grafonola, cuja lealdade a duas gerações Ducroix foi recompensada com um exílio forçado no saguão de um antiquário, partilhando recônditos aposentos com outros despojos familiares como o canapé esburacado, o toucador empoeirado e a velha gaiola de traça gótica de pássaros de boas famílias, que passavam as longas tardes da eternidade a jogar dominó do esquecimento e sussurrando múltiplas escleroses e memórias difusas dos dias felizes.

Mortificado com a mesma culpa dulcificada com que despejamos os nosso decrépitos entes queridos em lares blindados ao remorso, verdadeiras ante-câmaras da morte, onde cortamos os laços umbilicais em visitas cada vez mais sazonais.

Assim recordo a velha grafonola. Com arrependimento amorfo que jurei não repetir com a minha aparelhagem de alta fidelidade, a quem faço diariamente juras de fidelidade eterna.

Quando eu morrer, batam em latas, enterrem-me com a minha inseparável Pioneer, uma caixa de garrafas de vodka Moskowskaia e a colecção completa de CD`s do Sinatra.

Vamos fazer uma festança, eu e as minhocas, contorcendo-se de prazer enquanto se banqueteiam lentamente com a minha carne podre em molho de Vodka.
A Pioneer, essa, cantando a plenos pulmões – Strangers in the night!

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