7/26/2007

Reportagem V7 - Hot Club Portugal

“A música de jazz é uma inquietação acelerada.”
In “um certo sorriso” de Françoise Sagan





No nº38 da Praça da Alegria, em Lisboa o Jazz é quem mais ordena. Ao descer as escadinhas para a subcave, entramos no mais emblemático Clube de Jazz nacional. O Hot Club Portugal, a servir Jazz desde 1949



“Around midnight”, o filme de Bertand Tavernier, com Dale Turner no papel de um Dexter Gordon em espiral de decadência em Paris, sugere aquela que é provavelmente a melhor hora para descer as escadinhas do nº 38 da Praça da Alegria e entrar no santuário e praça-forte do Jazz em Portugal – o Hot Clube Portugal.
Como naquelas velhas casas de bebidas em Inglaterra, estilo Smithson food & drinks Since 1831, o Hot Clube Portugal pode orgulhar-se de servir jazz a Portugal “since” 1949.
A sua atmosfera parece segredar-nos isso mesmo, porque mais do que um simples bar, o Hot Club é a casa amiga do jazz em Portugal. Apesar de ser uma instituição quase vetusta, o ambiente informal e descontraído cria o espaço de eleição para o convívio de várias gerações de amantes de Jazz e de músicos - os mágicos do improviso, que ali deram os primeiros passos, tocaram os primeiros acordes e trilharam a estrada do jazz.
Mas quando se desce a claustrofóbica escada de acesso à subcave mais famosa da noite lisboeta, estamos também a descer às raízes de uma música com mais de um século, que se propagou da América negra ao mundo inteiro, como uma pandemia de ritmo e improviso.
No palco, os Wisful Thinking (ver caixa), um quinteto recém-criado que explora novos territórios do Jazz, são os herdeiros longínquos dos primeiros jazzman de New Orleans, que no início do séc. XX abriam o caminho para uma das mais marcantes e influentes formas de expressão musical contemporâneas. Sob a névoa de fumo que se agita com o solo de saxofonista dos Wishful Thinking, o Jazz parece dizer – “O que eu andei para aqui chegar”.

De New Orleans para o mundo
O Jazz é um mutante com ritmo, costumava dizer Miles Davis, um dos génios que marcou uma das muitas rupturas na linguagem daquela forma de expressão musical ao longo do Séc. XX.
Com efeito a história do Jazz reflecte essa excitante transfiguração que foi sofrendo, criando inúmeros movimentos que influenciaram e foram decisivamente influenciados pela história social e cultural do Séc. XX. “Não seria a música uma linguagem perdida, da qual esquecemos o sentido e conservamos apenas a harmonia”, interrogava-se o autor italiano Massimo Azeglio, e o Jazz parece ser na harmonia e no ritmo a “corporização” dessa ideia de Babel original.
Cronologicamente, o Jazz nasceu no período entre 1890 e 1910 em Nova Orleans, as suas raízes têm um forte cunho africano, já que remontam à música dos negros e criolos dos EUA e dos tempos da escravatura negra. Enquanto trabalhavam, os escravos entoavam cânticos de sofrimento e subtil contestação, os blues e o Ragtime, que são a árvore genealógica do Jazz. O termo “Jazz” começa a ser usado nos finais da década de 20 para descrever um tipo de música muito popular em Nova Orleans e em Chicago, e cujos expoentes principais são originalmente identificados como músicos de Jazz – A Dixieland Band, Nicky de La Rocca, o pianista Jelly Roll Morton, o clarinetista Sidney Bechet são alguns dos nomes que se podem elencar nesta vaga de pioneiros que deram o tiro de partida, para uma expressão musical que se tornou um fenómeno de enorme popularidade na América dos Anos 30, graças ao swing das Big Band`s como as de Duke Ellington, Bob Calloway e Earl Hines.
A evolução do Jazz, à semelhança das artes plásticas e da música clássica, seguia vários caminhos e tendências; muitas vezes opostas e contraditórias, como aconteceu com a clivagem ocorrida entre o bebop dos anos 40 e o cool jazz dos anos 50 – o confronto entre um Jazz mais popular e mainstream e um Jazz mais intelectual.
Depois, acompanhando o tempo de irreverência e inconformismo que marcou a década de 60, foi a vez de Miles Davids e uma nova geração de músicos rebentarem com os espartilhos do Jazz e liderarem a revolução do Free Jazz, uma das mais influentes na sua história. De qualquer forma, tal como os anéis de um tronco de uma árvore revelam a sua história e a marca da sua identidade, percorrer a história do Jazz é também uma viagem ao empolgante, dramático, mas imensamente estimulante Séc. XX.

Aqui há Jazz!
Inicialmente, o Hot Clube de Portugal era apenas um pequeno clube de amigos que se juntava para ouvir uns discos, beber uns copos e discutir Jazz, explica um dos “clubistas” de primeira hora que assistiu ao nascimento em 1949 do Hot, fundado por Luís Villas-Boas, o principal impulsionador da ideia, e que foi conjuntamente com alguns amigos um dos “pais-fundadores” daquele Clube.
Naquele tempo o Jazz era uma expressão musical reservada a uma pequena elite, mas o Clube acabou por ser um dos grandes meios de divulgação do jazz em Portugal. Ao longo das décadas passaram pelo palco da subcave do 38 da Praça da Alegria, alguns dos grandes nomes da cena Jazz internacional que marcaram e influenciaram duas gerações de músicos de jazz que “cresceram” no Hot Clube.
É essa mística de clube de culto que ainda hoje se respira naquele espaço, onde o jazz continua a dar a primeira nota. Durante toda a semana, o palco está aberto para Jam Sessions, onde os músicos podem improvisar em formações improváveis.
Sextas e sábados são dias de concertos, com algumas das mais influentes formações nacionais, compostas quase na totalidade por músicos formados na Escola do Hot Clube Portugal. Muitos deles dão aulas naquela instituição e integram a Big Band do Hot, um dos mais requisitados colectivos do Jazz nacional, que é presença assídua nos inúmeros festivais de Jazz que se vão propagando pelo país inteiro.
Com uma plateia interessada e interessante, que varia entre o aficcionado conhecedor e o turista curioso, entre o músico profissional e o universitário, o Hot Clube é um espaço muito eclético, onde é possível estar calmamente em silêncio a beber um bom vinho com Jazz ao vivo, ou então nas noites quentes de Verão, em animadas tertúlias na encantadora esplanada interior.
Porque no nº 38, o Jazz é mesmo uma alegria.

(Caixa1)
Escola do Hot ClubTalento e técnica

“O improviso é uma inspiração que de nada serve sem técnica”, afiança José Marrucho, jovem baterista que está a terminar a sua formação técnica na Escola do Hot Clube Portugal.
“No nosso país a escola do Hot é a única alternativa credível a uma formação clássica, e por isso, acaba por estar muito mais vocacionada para o mercado de trabalho”, explica o baterista que se prepara para dar os primeiros concertos ao vivo com um quarteto formado inteiramente por colegas de turma.
Fundada há 14 anos a única escola de Jazz do país é responsável pela formação da quase totalidade da nova vaga nacional de músicos de jazz e também de uma série de outros intérpretes que integram as formações orquestrais e algumas das bandas mais relevantes da música portuguesa nas suas diversas formas de expressão – do pop ao rock, passando pela música ligeira e mesmo pelo fado, a Escola do Hot é um viveiro de talentos. Nomes como Maria João ou o pianista Bernardo Sassetti são apenas alguns dos mais famosos músicos que deram os seus primeiros passos no Hot e que mantêm com aquela instituição e com o bar “uma ligação afectiva muito forte. É como se fosse uma grande família espalhada pelo mundo, que de vez em quando se encontra aqui em casa”, explica Bernardo Sassetti, frequentador assíduo da “casa nostra” do jazz lisboeta.
Actualmente com mais de uma centena de alunos a Escola funciona num espaço cedido pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, junto à FIL, que é no entanto precário e exíguo para as necessidades pedagógicas da escola. O sonho antigo dos sócios do Hot Clube é terem o bar e a escola no nº 38 da Praça da Alegria, o que permitiria à escola crescer e avançar com alguns projectos em carteira, como a abertura da vertente MIDI e música electrónica (cada vez mais importante), a criação de um Centro de Documentação e ainda de um Museu do Jazz, reunindo o espólio de vários sócios, com destaque para a colecção riquíssima de um dos seus pais-fundadores – Luís Villas Boas.
Enquanto esses sonhos não se concretizam, a Escola do Hot vai continuar a dar todos os anos à música portuguesa uma nova “fornada” de cantores jazz, pianistas, bateristas, contrabaixistas, guitarristas saxofonistas, trompetistas e um sem fim de novos talentos.

(Caixa2)
Wishful Thinking - Humor e ritmo

No palco cubicular do Hot Clube, os Wishful Thinking improvisam sobre o seu primeiro trabalho que deve ser lançado em Setembro com a chancela da Clean Feed Records.
Dois concertos no Hot Clube marcam o arranque de um programa mais completo que vai levar este quinteto ao Goethe Institute, ao CCB e ao Teatro Bernardino Ribeiro em Estremoz.
Alípio Neto, o saxofonista brasileiro radicado em Portugal acredita que o Hot Clube é mesmo a casa do Jazz em Portugal, quer pelo passado, quer pela atmosfera e mística que transmite, sendo por isso o melhor local para lançar as sementes de um novo projecto na cena jazz nacional – os Wishful Thinking, liderados pelo saxofonista pernambucano e pelo experiente e exuberante pianista Alex Maguire, e que integra ainda o trompetista Johannes Krieger, o baixista Ricardo Freitas e o baterista Rui Gonçalves.
No palco do Hot Clube os Wishful Thinking passaram pelo exigente crivo de um público conhecedor e entusiasta que se rendeu às composições do quinteto e à sua fogosa presença em palco, fazendo de um concerto de jazz uma autêntica performance de humor e ritmo. Alípio Neto define o jazz dos Wishful Thinking como um trabalho de composição original “não fazendo cedências a tendências mais mainstream. Apesar de ser um ensemble, portanto um colectivo, não anulamos as individualidades e damos liberdade ao improviso de cada um dos instrumentistas, que pode explorar as suas potencialidades.” O objectivo deste quinteto é transcender os limites que se colocam ao jazz clássico e explorar novos territórios da improvisação e estética contemporânea”.
A materialização desta filosofia é um jazz inconformado que gera imediata empatia mesmo nos seus momentos mais introspectivos.

1 comentário:

Flávio disse...

Nunca lá entrei, só conheço através do filme 'Belarmino' do Fernando Lopes.