2/13/2007

Encontro imprevisto na Bulhosa

O Central Park estava à pinha, parecia um refeitório colectivo de yuppies apressados e carrancudos. Desisti do sumo de melancia e da kiche de cogumelos e refugiei-me na Bulhosa. Gosto da Bulhosa por causa do nome.
Soa bem, parece uma iguaria antiga, uma receita perdida de um molho - pato com pinhões e recheio à Bulhosa.
Bertand não gosto, tem nome de televisor ou transistor para ouvir o relato da bola.
Também gosto de Bucholz. Soa a filosofia séria, a santuário de amor aos livros; respeitável e com ressonância de negócio de família, como uma mercearia de serviço austero, mas atencioso.
Entrei na Bulhosa e fintei os escaparates com uma simulação de corpo à Garrincha, driblei depois as estantes dedicadas aos nados bestsellers de fabrico nacional.
De fabrico nacional gosto do vinho, do queijo e das bolachas maria.
Parece que agora o romance histórico ou de inspiração histórica varreu os teclados dos escrivões lusos. Bocage e D. Sebastião exibiam sorrisos amarelos e cúmplices, expunham-se lado-a-lado como temível e travessa duplas de centrais paraguaios.
Com uma revienga à Tostão, passei pelo meio de ambos sem lhes passar cavaco.
Confesso que hesitei na lateral direira, a estante da Tachen impunha-se como uma Tágide traiçoeira. Audrey Hepburn dissimulava aquele sorriso cândido capaz de destruir um império. Mas quase perdia a compustura de avançado mortífero quando fui barrado por "A History of breaths trough time", que é como quem diz "História de mamas através dos tempos".
Pin-ups de calendários dos anos 50 sussurravam com lascívia - leva-me contigo.
Foi por um triz. Felizmente o preço (quase 50 euros) impediu-me de ornamentar a minha estante onanista.
Que nem uma seta apontei ao cantinho escondido da poesia. Respirei fundo e aliviado, folheei Sophia, cusquei Eugénio, fingi concentrar-me em Verlaine, até que por fim, lá estava ele, bonacheirão, velhinho e simpático.
Manuel Bandeira, brasileiro, pai do modernismo transantlântico, poeta grande, coração ainda maior. Sorri-lhe e pedi para me ler um poema. Ele pigarreou a cigarrilha turca e disse:

"Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha de horizonte.
O que eu vejo é o beco."

Encurralado, meti-o no bolso e fui-me embora para Pasárgada, "lá sou amigo do rei, lá tenho a mulher que eu quero, na cama que escolherei".
Pelo caminho, raptei Zeus e seus panteão, os deuses celtas e até ugro-filandeses, levei-os todos empacotados por Félix Guirand na monumental "História das Mitologias".
Paguei e fui-me embora sem almoçar.
Em casa fiz sandes de queijo da serra para todos, abri uma garrafa de vinho.
Foi uma paródia até às tantas. Manuel Bandeira a recitar poesia e os deuses gregos numa grande orgia.
Dionísio podre de bêbado a ver se levava para a cama Nijola, a sensual deusa da fertilidade lituana. Zeus ressonava e Apolo jogava canastra com Rá. Foi até de madrugada, mas por fim,
lá corri com eles para a estante do Círculo de Leitores, depois de deitar Manuel Bandeira, exausto, ao lado do seu amigo Drummond.
Meti-me no endrendon, apaguei a luz e num suspiro lembro-me de ter ficado a pensar que devia ter trazido a "história das mamas ao longo do tempo".

1 comentário:

lune_blanche disse...

Querido Rui,

Assim como você o escreveu, é "Uma história das respirações através do tempo" ;-) Também teria o seu interesse, avaliar as inspirações e expirações mais emblemáticas da história. Se bem que teríamos que nos limitar aquelas que estão documentadas sob alguma forma/ suporte.
Adorei a descrição dessa noite louca na sua casa, costuma fazer muitas festas assim?