2/06/2007

Desconstrução do Não (I Parte)

As principais teses do Não, porque por vezes as piores tarefas são feitas com os melhores dos propósitos:

1 - Tese da pergunta com malformação congénita
A formulação da pergunta do referendo é capciosa e não introduz a necessária regulamentação da interrupção voluntária da gravidez

A pergunta é idêntica à colocada em 1998, tendo sido duas vezes escrutinada e aprovada pelo Tribunal Constitucional e votada maioritariamente na Assembleia da República. Como já foi explicado até à exaustão, seria impossível e inconstitucional a pergunta do referendo conter todo o enquadramento legal para a prática de interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas por decisão da mulher em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Essa será a tarefa do legislador, que só o poderá fazer depois de votada em referendo a despenalização nas condições enunciadas na questão.
Tudo o resto são subtilezas de tribunos, indignas num debate desta índole.


2 - Tese do cheque em branco
Votar Sim é votar a favor da liberalização do aborto passando um cheque em branco à mulher que o queira fazer.

Votar sim é votar na despenalização penal da interrupção voluntária da gravidez, desde que ela seja feita nas primeiras 10 semanas em estabelecimento de saúde autorizado e por decisão da mulher, o que exclui as intervenções feitas fora desse período, desses locais e por decisão de outrém.
Liberalizar o aborto seria permiti-lo em qualquer tempo de gestação, sob quaisquer condições e a mando de qualquer um. Curioso o labéu com que se pretende crivar a palavra liberalização, sobretudo por muitos defensores do “Não” que se pavoneiam na vida pública como liberais.
O seu liberalismo confina-se às negociatas. Não são liberais, são meros comerciantes. Um liberal é alguém que defende a liberdade e a procura da felicidade individual, sem que ela seja tutelada pela vontade do Estado, ou pela moral dominante.


3 - Tese da má-consciência
Somos contra a liberalização do aborto, mas consideramos que as mulheres que abortam não devem ser punidas, aliás não há uma única mulher na cadeia por ter cometido esse crime.

Mirabolante e estapafúrdia tese do Prof. Marcelo que rapidamente fez escola. Mantendo a actual moldura penal, o aborto é passível de acção criminal, que em última instância pode levar mulheres à cadeia.
O facto de não haver mulheres na cadeia não impediu que muitas fossem levadas a tribunal, sofrendo a humilhação e devassa da sua vida privada, típica destes casos.
Aliás, nada garante que no nosso kafkiano sistema de justiça não apareça um destes dias um juiz imbuído dos axiomas do fundamentalista-biológico que decida não fazer vista grossa e aplicar a lei “avant la lettre”.
A lei deve ser clara e transparente e deixar o mínimo de latitude às discricionárias interpretações da magistratura
De qualquer forma não se vislumbra como é que se pode defender a criminalização do aborto e simultaneamente “descriminalizar” quem o pratica, mesmo com originais artifícios jurídicos, como a suspensão do processo penal ou a invocação de causas desculpabilizantes, como tão facilmente demonstrou Vital Moreira no seu artigo do Público “A estratégia da confusão”.
Este argumento é um sintoma de má consciência e enferma de uma insanável contradição que faria o Professor Marcelo chumbar em qualquer oral de liceu.
É um argumento hipócrita que aceita a “despenalização” da mulher que pratica o aborto, desde que o faça longe dos estabelecimentos de saúde devidamente autorizados, os únicos que lhe podem oferecer aconselhamento psicológico, bem como actos médicos seguros.
A isto pode com propriedade chamar-se – a tese da liberalização do aborto clandestino – cuja autoria moral é dessa reverenda e cabotina figura, e que pelos vistos se transformou rapidamente no mais popular argumento dos defensores do “Não”.

4 - Tese do equilibrismo
Devem ser calibrados os direitos da mulher com os direitos do embrião. A liberdade deixa de ser absoluta quando os direitos de outro estão em causa

Inteiramente de acordo com esta formulação.
Acontece que sob a actual forma de lei, essa equitatividade está descalibrada, já que o embrião goza de direitos quase absolutos sobre a liberdade de escolha individual da mulher.
Ao votar Sim está-se a introduzir um maior equilíbrio entre os direitos da mulher e do embrião, já que a primeira pode fazer em consciência a sua escolha no primeiro terço do período de gravidez, e o segundo goza de protecção penal no restante período da gravidez.
A “bondade” deste argumento encerra também um sinistro raciocínio ortodoxo-católico que relega a mulher a uma mera função reprodutora e hospedeira. Curiosamente, esta é a tese defendida, por exemplo, por Laurinda Alves.

5 - Tese do efeito multiplicador ou do telemóvel
Despenalizar o aborto é uma forma de facilitismo que vai aumentar exponencialmente o número de abortos em Portugal

Formulação da famosa tese dos telemóveis do sr. César das Neves, que encerra um obsceno juízo moral em tom de jocoso paternalismo.
Não havendo números fidedignos sobre o aborto clandestino em Portugal (calcula-se que sejam 18 mil por ano), é natural que a despenalização permita identificar a dimensão do fenómeno, e que numa primeira fase ele pareça “exponencial”. Muitos partidários do “Não” evocam estudos e números do EuroStat em relação a países onde o número de abortos tem vindo a crescer.
Mesmo tomando como bons esses estudos, acontece que os números são como o cubo mágico, tudo depende da cor que se quer mostrar. Porque os números evocados são absolutos e não cruzam variáveis tão importantes como: mulheres em idade fértil, condições sócio-económicas, números de consultas de planeamento familiar, acesso a meios contraceptivos ou até diminuição do número de abortos clandestinos com natural “migração” para os números da legalidade oficial.
É natural que, caso seja despenalizada a interrupção voluntária da gravidez, o número de abortos a praticar em Portugal seja superior a 18 mil, porque a clandestinidade favorece a ocultação; já para não falar dos outros milhares de portuguesas que deixarão de ir a Espanha ou Londres, e poderão passar a ser assistidas legalmente no seu país.
A tese do facilitismo pressupõe que o aborto é uma decisão “fácil” e leviana e que a despenalização vai permitir fazer abortos de ânimo leve, como se fosse um mero método contraceptivo.
Este grotesco raciocínio revela um total desconhecimento da natureza dramática e solitária decisão de fazer um aborto, e pior, da natureza das mulheres, como se fosse plausível pensar que até hoje muitas mulheres decidiram deixar de fazer um aborto porque era ilegal.
O mesmo é dizer que agora passarão a fazer mais porque é legal. Os defensores desta tese ainda têm o atrevimento de se auto-proclamar humanistas? Que a vergonha se abata sobre vós.

6 - Tese da pílula do dia seguinte
Com o acesso ao planeamento familiar, a métodos contraceptivos e inclusive à pílula do dia seguinte, deixa de haver qualquer justificação para o aborto.

Em primeiro lugar não está totalmente garantida a fiabilidade da generalidade dos métodos contraceptivos.
Ainda que estivesse, continuaria por generalizar o acesso a esses meios, quer por uma questão de informação, quer por uma questão económica.
Quem (re)produz este argumento teima em olhar o mundo através do seu umbigo e do seu círculo restrito de conhecimentos. Num país onde há bolsas de miséria, onde se calcula que haja mais de um milhão de pessoas que vivem no limiar da pobreza (sem condições sanitárias e educacionais mínimas), defender que o acesso a meios contraceptivos “é generalizado” é um autêntico insulto à pobreza e às condições de vida de muitos dos nossos compatriotas.
Em consciência, todos aqueles que assim pensam deviam defender a Educação Sexual nas escolas, a distribuição gratuita de meios contraceptivos a grupos de risco (nomeadamente nas escolas secundárias); o aumento exponencial das consultas de planeamento familiar e a redução dramática do tempo de espera para essas consultas (que nalguns casos ultrapassa os seis meses). Curiosamente não consta que o façam.
Entre as muitas causas possíveis que contribuem para a prática clandestina do aborto em Portugal, a pobreza e a falta de informação não serão certamente desprezíveis. Todas as pessoas dos círculos dos autores deste argumento estão certamente informados sobre os métodos contraceptivos, mas também sobre as clínicas em Espanha e Londres, onde podem fazer um aborto seguro. O aborto só é clandestino para quem não pode pagar um legal e seguro.

2 comentários:

lune_blanche disse...

Caro Rui,
É sempre bom ler os seus textos claros e objectivos ;-)
Todas estas teses do NÃO são facilmente refutáveis, como se verifica. Fico à espera da parte II.

Anónimo disse...

Foda-se!
Com muito amor, de preferência!