2/13/2007

Desconstrução do Não (II)

7 - Tese do contribuinte ofendido
Porque é que os contribuintes hão-de financiar com os seus impostos as clínicas de aborto?

Simplesmente porque o aborto clandestino é um problema de saúde pública e um flagelo social, que deve ser enquadrado no âmbito do SNS, ou de eventuais contratualizações que este decida celebrar, como aliás o faz para centros de tratamento de toxicodependência, tratamento da tuberculose ou para tratamento de doentes de SIDA. Colocar a questão nesses termos é o mesmo que perguntar a um contribuinte se acha que deve comparticipar tratamentos de metadona a um toxicodependente, ou retrovirais a um doente da SIDA. Além disso, as mulheres também pagam impostos.
Este é uma pergunta que qualifica bem quem a faz.



8 - Tese eugenista
Com o problema demográfico e o envelhecimento da população é um absurdo estar a ceifar potenciais vidas

Pela mesma ordem de razões os defensores desta tese colocam-se ao lado de teses eugenistas e das restritas políticas de natalidade da China.
O problema demográfico não se resolve penalizando penalmente a interrupção de gravidezes indesejadas, até porque está provado que a ameaça da punição não impede a sua consumação; apenas impede que seja feito em condições clínicas seguras.
Estes “Eugénios” sociais poderiam também defender a “obrigatoriedade da reprodução” limitando o recurso a contraceptivos, proibindo as vasectomias e os laqueamentos de trompas, os DIAP`s ou até a pílula e os preservativos. Na sua sinistra linha de raciocínio, a fertilidade e a constituição de família devem ser impostas e reguladas pelo Estado em nome de um suposto interesse superior, e independentemente das condições económicas, sociais e psicológicas de cada indivíduo. Este pensamento tem um nome simples – chama-se fascismo.


9 - Tese médico-legal
Os médicos são contra a interrupção voluntária da gravidez. Por isso é uma violência impor-lhes uma prática condenada pelo seu código deontológico

Louvável esta sensibilidade com a consciência dos médicos. Acontece, que há muitos médicos que são a favor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, porque colocam a saúde dos seus pacientes acima dos seus juízos morais. Nenhum código deontológico é imutável e nenhuma regra de conduta profissional se sobrepõe à lei geral da nação. E se a lei geral da nação passar a permitir a prática de interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas em estabelecimento de saúde autorizado, a Ordem dos Médicos deve rever o seu código deontológico e permitir que os médicos contribuam para o saneamento de um problema de saúde pública. Todos os que preferirem por questões de consciência não o fazer, devem invocar um estatuto de objector de consciência devidamente justificado e enquadrado. A única violência é haverem milhares de portuguesas que sofrem problemas de saúde devido a abortos clandestinos e não recorrem aos hospitais e centros de saúde com medo das consequências penais. Por mais que gostassem alguns médicos, um hospital não é um tribunal.

10 - Tese do vanguardismo humanista
Apesar de noutros países haver leis mais condescendentes com o aborto, Portugal podia ser pioneiro e vanguardista no humanismo de proteger a vida

Pioneiro significa ser o primeiro. Não se percebe o pioneirismo de manter uma lei conservadora e retrógrada que existiu em muitos países da Europa, mas que foi sucessivamente abandonada em nome de um realismo humanista que acompanhou a evolução da sociedade.
Por cá, luminárias toscas e tiazinhas ungidas como Matilde Sousa Franco acham que vanguardismo é sinónimo de imobilismo. Esta é uma tese que não resiste a uma consulta breve do dicionário, quanto mais a um manual de direito comparado.
Será que há menos ética e respeito pela vida em países como a Suécia, França, Inglaterra, Alemanha, EUA ou Canadá?

11 - Tese utópico-social
Devem-se atacar as causas do aborto e defender a maternidade em vez de liberalizar o aborto

Tese preferida dos corações bondosos e brandos, mas que encerra um idealismo funesto e instrumental. Ainda que num súbito golpe de mágica fosse possível criar uma sociedade de bem-estar, onde as causas prováveis do aborto fossem completamente erradicadas, jamais seria possível acabar com as gravidezes indesejadas e com o aborto clandestino.
Por isso mesmo, combater as causas do aborto não justifica “per se” uma oposição à despenalização do mesmo. Justíssimo que se lute por planeamento familiar, educação sexual nas escolas, apoio sólido à maternidade, combate à pobreza, mas não percebo porque é que essa defesa tem de ser feita em justaposição à obstinação em manter a interrupção voluntária da gravidez como crime punível por lei. Se pensarmos que um senhor como Bagão Félix é um destes arautos da boa causa, e que foi ele, enquanto Ministro do Trabalho e da Segurança Social, que assinou uma lei que reduz o período de licença de parto, então percebemos que a utopia se confunde perigosamente com hipocrisia. As preocupações com as causas do aborto terminam no dia em que o seu dogma for imposto à restante sociedade. O que lhes interessa verdadeiramente é manter o aborto como crime, “no matter what”.


12 - Tese do protagonista
Desde que é gerado, o embrião goza de direito à vida e a vida deve ser protegida

É no fundo a tese central dos defensores do Não e a única a merecer consideração do ponto de vista filosófico, ético e científico. Trata-se de matéria de convicções, e nessa qualidade devem ser respeitadas.
Mas, para haver coerência nesta tese do absoluto e sagrado direito à vida do embrião, então estas pessoas devem ser contra as excepções inscritas na presente lei, nomeadamente, o aborto em caso de malformação do feto ou em caso de violação.
Admitindo estas excepções, abrem a “caixa de Pandora” e deixam de ter idoneidade ideológica, já que consideram que o tal sagrado direito à vida do embrião não é total, absoluto e inviolável, havendo “protagonistas” de primeira e segunda categoria.
Mesmo que respeitáveis, os argumentos filosóficos, éticos e científicos não são absolutos e categóricos, já que para o mesmo problema é possível encontrar formulações filosóficas, éticas e científicas que caucionem o juízo diametralmente oposto. Significa isto tão somente que não havendo consenso social, deixa de haver razão para legitimar o uso da força penal, através do Estado, para impôr à restante sociedade as nossas próprias convicções.
É livre de não o fazer quem nisso acreditar, é livre do fazer quem necessitar. Trata-se de uma elementar questão de liberdade individual, que tanto parece acicatar um país povoado de tiranetes. Para os partidários do “Não”, o protagonista deste referendo é um conjunto de células em formação, sem autonomia da vida da mãe.
Para mim, o protagonista deste referendo é a liberdade.
A liberdade, essa sim o dom mais precioso da vida.

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