1/29/2007

Fossanguice e esperança

“Detestava os bacorinhos, com a pele cor-de-rosa, a suar de gordura, fossando até aos olhos, grunhindo de gozo, na lavagem das gamelas”.
Eça de Queiroz, “Capital”



Esperança em melhores tempos é o apelo que Cavaco Silva fez até ao bocejo do pagode no seu primeiro discurso de ano novo como Presidente da República.
Ora em relação à esperança, nada como revisitar as palavras do escritor francês Céline, um avinagrado pessimista (estilo Vasco Pulido Valente).
Derramava ele: “Ter esperança é acreditar que um dia a merda cheire bem”. Apelar à esperança é por isso convocar uma impossibilidade escatológica, sobretudo num país como o nosso, que é um bocado como aqueles futebolistas das camadas juniores que nunca singram nas equipas principais – somos, como país, uma eterna esperança, uma espécie de país-Litos (o tal que era melhor que o Futre e acabou a treinar e mal o Estoril).
Conviria aliás recordar o nosso proeminente Presidente que a última vez que o país teve razões para ter esperança, foi quando ele próprio tomou conta dos destinos da carroça e esporeou o jumento atrás da cenoura europeia. Foi-se a cenoura e ficámos na mesma carroceiros e burros de carga, alimentados a varapau e a renovadas esperanças, que é o pão dos idiotas.
Isso são águas passadas, mas é sempre bom espevitar a memória, contra os políticos-borracha-de-apagar.

Esperança e mudança são duas palavras tão carregadas de vazio como um discurso presidencial, que as luminárias amortalhadas nos jornais e têbês, tratam de analisar, descodificar e escalpelizar, como se um discurso de ano novo do Presidente da República tivesse um prazo de validade maior do que um iogurte do Lidl ou um episódio de “Morangos com Açúcar”. É apenas um formalismo vácuo, e quem ocupa a vida a analisar o vazio só pode ser nihilista ou tão intruja como um prestidigitador de feira.
O discurso da esperança apenas pode surtir naqueles que têm motivos para aspirar a um BMW novo, umas férias na Polinésia, uma casa rústica na Serra da Estrela ou um “aumentozinho” como deve ser. Esses podem ter esperança.
Quanto aos outros, os que vivem no limiar da pobreza, que contam os tostões para comer e vestir os filhos, os que têm reformas que se consomem em medicamentos; para esses um apelo à esperança só deve dar para encher a barriga … de riso. Um riso amargo.
O caminho para a esperança, faz-se, segundo o nosso Presidente, de trabalho, responsabilidade (individual e social) e sobretudo de produtividade.
Mais uma vez, a glorificação do trabalho num país de calões, como subtilmente se induz.
Ora, eu cá sou menos ambicioso do que o nosso Presidente e tenho apenas um desejo para o meu país em 2007. Esse desejo é erradicar a fossanguice, ou pelo menos combatê-la como autêntico flagelo nacional, que mina a nossa coesão como povo.


Fuçar ou fossar é a forma como o individualismo lusitano se exprime na sua vida quotidiana e no seu devir colectivo.
Tal como os bácoros fuçam na pocilga para botarem dentuça na melhor bolota, os portugueses encaram a vida como uma desenfreada competição, em que a lei da fossanguice é uma variação da lei do mais forte, ou no nosso caso, do mais espertalhão.
No reino da trafulhice organizada, a arte da fossanga é uma competência importante para sobreviver; é a partir dela que nascem alguns dos grandes furúnculos que se instalam no nosso tecido social. Fenómenos como a corrupção, compadrio, tráfico de influências, ganância colectiva, crédito malparado ou até simples engarrafamentos de trânsito são consequência desse código genético que transportamos desde que D. Afonso Henriques deu uma golpada na mãe e construiu uma nação-fossanga à força da espada e da esperteza saloia.
Como a força da espada há muito esmoreceu, sobram-nos neurónios dedicados à arte de fuçar e passar a perna no próximo.
Num país tão católico e de boas famílias como o nosso, é bom ver que o “amor ao próximo” é comungado uma vez por ano na missa do galo a abarrotar de bons cristãos, acabadinhos de desembrulhar os telemóveis 3G, os carrinhos telecomandados e as roupas caras, que escutam com murmurante concordância o sermão do pároco sobre a interrupção voluntária da gravidez e o mistério da vida.
O amor ao próximo destes cristãos é ensinamento para usar duas vezes este ano – o primeiro no dia do referendo sobre o ventre de outras pessoas, e o outro na dízima da missa do galo. Quantos aos outros trezentos e tal dias, são dias de São Fução.
Para fuçar na fila do supermercado e passar à frente do miúdo com ar de tótó; para fuçar pelas traseiras e fintar os voluntários que recolhem arroz para o Banco Alimentar Contra a Fome; para fuçar no trânsito e ultrapassar os outros papa-açordas; para ser o primeiro a e estacionar em cima do passeio tornando-o uma fortaleza inexpugnável para velhinhos de bengala e carrinhos de bebé; para fuçar por uma boa posição naquele novo Centro Cultural graças à tal cunha do primo no Partido; para fuçar uma cunha lá na câmara a aprovar o campo de golfe numa reserva agrícola; para fuçar uma nova dotação orçamental do Estado; para fuçar pelo subsídio do décimo curso de formação profissional; para fuçar por uma promoção no emprego; para fuçar por mais senhas de gasolina ou ajudas de custo; para fuçar por um desconto na compra do chaço novo; para fuçar por mais um DVD à borla com o Expresso; para fuçar por um bilhetinho à borliú para um concerto do Represas (a mim nem que me pagassem); para fuçar pela melhor pata de sapateira num jantar com amigos; para fuçar por copos à borla no bar do Leonel; para fuçar por uma fotografia da festa de anos na revista “Caras”; para fuçar por um papel de acne secundário na “Floribela”; para fuçar por um lugar de destaque nesse altar da fossanguice ufana que é a blogosfera portuguesa; para fossangar por um canto na prateleira do hipermercado para um novo livro de confissões flatulentas; ou até para fossangar por um lugar fora da prisão, que é tarefa que ocupa uma quinhão importante dos nossos compatriotas.
Fossangar, pedinchar e andar à mama são “full time jobs” dos portugueses, e o meu desejo para 2007 é que se proceda a despedimentos massivos nas fileiras dos fossangas, dos pedinchas e dos mamões.
Deslocalize-se a fossanguice para o Ártico Sul, onde até focas, ursos polares e pinguins convivem com maior cordialidade e generosidade do que nós por cá, que vamos à missa comungar o amor ao próximo e escutamos embevecidos os discursos da vã esperança do nosso Presidente da República, enquanto grunhimos “de gozo, na lavagem das gamelas”. Os grunhos para o Ártico, já!

(Publicado no JF, um destes dias)

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