12/30/2006

Late Call

Publicado no belo número um da revista A23, sonhada pelos meus talentosos amigos Ricardo, Salvado, Margarida e com contribuições de outros tantos amigos, quando fazer uma revista é como um serão de Agosto a beber copos com os amigos numa esplanada. Isto não é uma republicação, apenas uma boa recordação da noite em que o Ricardo me ligou a dizer - precisamos de um texto teu que temos que fazer mais um caderno para fechar a revista hoje de madrugada. You are the boss, meia garrafa de whisky e uns quantos charutos depois deu nisto, e deu um prazer dos diabos sabendo de antemão para quem e para onde era.

Cerco de Jericó

“Uma cidade é uma possibilidade, desde que se cultive a arte do possível”

Tom Waits e o meu avô Manuel Vitorino partilham uma filosofia diurética. Ambos são extraordinários bebedores e apreciam uma pequena particularidade da vida no campo – Mijar ao ar livre.
No pico de Dezembro o meu avô prefere regar as suas viçosas couves, enquanto Tom Waits montou o seu estúdio num galinheiro para gravar “Mule Variations” e nos “intermezzos” poder mijar ao luar do Arizona.
Há quem viva com a eterna melancolia da vida no campo, sem saber que a vida no campo se resume a mijar sob o luar calado e cúmplice e escutar a chuva a bater na terra, emanando aquele cheiro a fecundação da Gardunha.
Nas cidades, mijar na rua é punível com coima, e por isso inventaram o urinol, que pode ser um equipamento sanitário ou um meio de financiar a nova decoração do gabinete do vereador local. Felizmente, mijar nas cidades em Portugal é uma borla, ainda que meio secreta. Nas cidades da Mittleurope só mija quem paga.
Essa pequena diferença reflecte-se na qualidade do serviço. Trata-se da melhor publicidade à liberalização capitalista do xixizinho público. Enquanto em Portugal um urinol cheira a mijo e tem aquele encanto sórdido da poesia ejaculada nas paredes e na loiça da fábrica de Valadares, no meio da Europa as “toillets” cheiram a alfazema e o papel higiénico é mais do que suficiente para garatujar um volume de “A memória do mundo – das origens até ao ano 2000”. Este opus magnum da história da humanidade foi a última aquisição da minha mãe nas promoções do Círculo de Leitores. Ela ficou com o triturador Moulinex (a terceira, para o caso de avarias). e eu fiquei com a história do mundo, desde Lucy, a remotamente sexy avó de todos nós, até à última entrada que relata o problema da sobrepopulação no planeta terra: “Com uma taxa de crescimento de 2 por cento ao ano, a população mundial duplica em cada 35 anos. A manter-se assim o mundo terá 56 biliões de habitantes em 2100”.
Os catastrofistas, estilo Malthus, diriam que não haveria croissants quentes e sushi para todos, mas um inabalável optimista pensaria de imediato nas vastíssimas possibilidades de encarar de frente um problema de sobrepopulação de mulheres boas, e sobretudo disponíveis…
Na mesma obra enciclopédica que serve de base para os meus copos de whisky, conta-se a história de Jericó, oficialmente a “mais antiga cidade do mundo”. Mais interessante do que a sua fundação, que data do VIII milénio, é a história do seu cerco e destruição, como reza o livro de Josué do Antigo Testamento: “No sétimo dia, as muralhas de Jericó caíram, o povo entrou na cidade e passou a fio de espada homens, mulheres, crianças e velhos, até mesmo os bois, as ovelhas e os jumentos. Os muros de Jericó não voltaram a erguer-se.”
Esta carnificina recoloca o problema do trânsito em Lisboa num patamar ético completamente diferente, e leva-nos à inevitável catalogação das cidades modernas – entidades devorativas de terra e homens? Santuários do anonimato? Território da solidão pura?
Eu cá, que a Malthus prefiro o malte, gosto de pensar que uma cidade é acima de tudo uma possibilidade; um território de escolha, um caminho só nosso que eventualmente se cruza com outros. Uma cidade é uma liberdade vigiada, mas a liberdade possível de espetar o nariz na “Ronda da Noite” do Reijk Museum depois de um charro de “White Widow” num “coffe shop” em Amsterdão, ou de um mergulho na praia de Copacabana e depois comer um bolinho de bacalhau e ver as bundinhas cariocas a passar ao som do choppe; ou beber vinho e comer queijo em Paris, andar de táxi em Roma, ir às putas nos arranha-céus de Tóquio e nas catacumbas do Cais do Sodré, ou simplesmente dizer adeus ao homem que diz adeus nos semáforos do Saldanha.
Uma cidade é ir até Cabul no bolso de Vasquez Montalban e na companhia “groumet” do seu detective Pepe Carvalho, entre acepipes e iguarias.
É isso que vale a pena nas cidades – a possibilidade de conhecer as pequenas aldeias que somadas e multiplicadas fazem uma metrópole de sensações e descobertas. E isso é quase tão bom como mijar ao ar livre sob a sombra de uma Gardunha de Dezembro.

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