3/08/2006

Mãe coragem num país surdo-mudo

“(…) A solução da solidão compartilhada
onde vejo o meu mais profundo mundo
seria a solução ampla e sem fundo
oposta sem resposta ao meu país do nada

Com a voracidade do olvido
seria só tu vires e lutares
e por mim de olhos enormes e crepusculares
serias ente querido recebido

Volta com os primeiros anjos de Dezembro
num vasto laranjal eu quero amar-te
e então a tua vida há-de ser a minha arte
e o teu vulto a única coisa que relembro (…)”

“Poema para Catarina”, Ruy Belo



A Catarina tem 30 anos. O Manel está quase a fazer sete meses, e mostra já talentos de futebolista, a julgar pelas biqueiradas que vai dando na barriga da Catarina.
A Catarina trabalha numa empresa há mais de cinco anos. Fez carreira abnegada com aquele entusiasmo juvenil de quem veste a camisola. A Catarina dorme mal, porque o Manel passa a noite a brincar aos Maradonas. Levanta-se todos os dias às oito da matina, veste-se com cuidado e arranja-se com o esmero vaidoso que sempre teve. Afinal, ter uma barriga do tamanho de uma bola de praia não é razão para deixar de ser mulher. Bem maquilhada e com aquele ar enérgico e despachado sai de casa, apanha dois autocarros, normalmente à pinha. Aguarda pacientemente na fila, e depois espera que alguém lhe dê o lugar, para passar uma hora metida num autocarro a transbordar como enlatado nauseabundo de cheiros e indisposições matinais. Nem sempre lhe cedem o lugar, e quando o fazem é muitas vezes de forma renitente e rezinga.
– A partir dos cinco meses é mais fácil. É que a barriga vai-se lhes metendo pelos olhos a dentro – explica meio zangada, meio divertida.
Às 9.30 h já está sentada na sua cadeira de escritório. É uma daquelas cadeiras compradas por atacado, desconfortável e tão ergonómica como uma cama de faquir.
As cadeiras da administração são de pele, reclináveis, com massagem automática e design com assinatura – são cadeiras topo-de-gama. As dos directores, coitados, já não têm direito a massagem incorporada nem a design assinado, e as dos quadros superiores e administrativos, nem reclinação, nem couro. Nicles.
Têm estofo azul e estrutura de plástico cinzento e são todas de aviário, inaptas para proporcionar bem-estar e conforto a um corpo humano por um período superior a uma hora.
É numa destas cadeiras talhadas para quadro superior que a Catarina e o Manel se sentam um dia inteiro, todos os dias, a partir das 9.30h.


Há dois tipos de empresas – as em que as cadeiras são todas iguais, e as em que umas cadeiras são mais iguais que outras.
A Catarina trabalha numa destas empresas onde os rabos são alvo de descriminação hierárquica.
O Manel não gosta da cadeira nem deste sistema de castas e revoltado continua a dar pontapés. O Manel é o primeiro filho da Catarina, mas não é a primeira gravidez. A mãe da Catarina vai preparando o guarda-roupa do Manel e vive em sobressalto porque a gravidez da filha é de risco.
O pai e o tio do Manel já se vão preparando para ajudar o Luís Filipe Vieira a somar mais um kit de sócio, e a Catarina vai teimando em viver a gravidez como se não fosse uma doença.
Mas a Catarina trabalha numa das muitas empresas portuguesas em que as cadeiras não são iguais para todos, trabalha numa empresa a que durante cinco anos deu mais do que o tempo normal de trabalho, deu mais do que o entusiasmo do primeiro emprego a sério.
Deu, e agora com uma barriga de sete meses recebe o quê?
A alegria da Catarina de uma gravidez querida, que será uma das últimas alegrias dos avós velhos da Catarina, a alegria de uma vida nova que a família espera como uma dádiva. Essa alegria chamada Manel é uma gravidez indesejada pela empresa das cadeiras azuis onde a Catarina trabalha.

A empresa das cadeiras azuis é decrépita e falida, como uma velha baronesa. A salvação está nos novos modelos de gestão, no trabalho-maratona, de horas a fio no escritório, nos yuppies arrivistas, que sacrificam tudo em prol de uma ilusão – a da própria importância e a do mito pacóvio da “produtividade”.
A equipa onde a Catarina trabalha é pequena e toda a gente dá o litro. Dar o litro significa ficar a fazer horas até às tantas, alimentando a ilusão de produtividade e competência até esta ficar saciada. A Catarina tem uma chefe, ainda nova disposta a tudo para mostrar serviço ao chefe que é administrador.
A Catarina sentiu-se agoniada e o Manel com fome a dar pontapés na barriga, e pediu para ir para casa um pouco mais cedo do que as oito e tal da noite costumeiras.
A chefe em tom de mesquinho desprezo retorquiu: – Tem de ir à sua vidinha, não é?
Na empresa, as cadeiras azuis só rodaram na sua carapaça invejosa - igual à das pessoas que nos autocarros fingem não ver os velhos, os inválidos e as grávidas - as cadeiras só rodaram de orelha à coca quando descobriram que a Catarina iria ser a primeira grávida da empresa a optar por gozar cinco meses de licença de parto, sendo que o último mês é uma decisão sem custos para a empresa, que gasta milhões em foguetes e mijaretes.
- Cinco meses – levanta-se o coro ululante de sornas, capazes de se indignar com um direito expresso por lei, e assobiar para o ar, quando a chefe da Catarina lhe pede para ela lhe levar a pesada pasta do computador portátil até à reunião com a administração.
E lá vai a barriga da Catarina com o Manel a dar biqueiros, lá vai ela a subir as escadas para levar o portátil com os números da próxima campanha de promoção da imagem da empresa, oferecendo um serviço moderno, desenhado para os utentes e mais não sei quantas basófias hipócritas pagas a preço de ouro a agências de publicidade medíocres, mas das boas graças do administrador.
O mesmo distintíssimo cavalheiro e génio do marketing que inquiriu candidamente a Catarina, se ela estava mesmo a pensar gozar a licença de parto – ele não se referia ao quinto mês, mas à totalidade da licença de parto!

E, a Catarina vai acalentando a amargura em silêncio, vai chorando baixinho: – São as hormonas, ando com as hormonas todas baralhadas – e vai suportando estoicamente as biqueiradas do Manel e o estigma de ser grávida numa empresa de cadeiras azuis. A Catarina e todas as Catarinas deste país para serem mães têm de lutar contra o preconceito, contra os labregos do “break even” e contra o machismo de saia.
Esta é a Catarina do escritório, formada, bem informada, mas incapaz de fazer valer os seus direitos. Depois há a Catarina da fábrica, a Catarina do banco, a Catarina do campo, a Catarina do supermercado, que começam a ser mãe coragem assim que enfrentam o semblante carregado do chefe.
As Catarinas que são obrigadas à vergonha de terem emprenhado, neste país sem pingo de vergonha. Há Catarinas que perdem o emprego, há Catarinas que abortam para não perder o emprego, há Catarinas que sofrem em silêncio e em angústia, pela simples e maravilhosa ousadia de carregarem, de gerarem uma vida.
Ser mãe em Portugal é ser mãe coragem.
Ele há ou não melhor metáfora para o nosso endémico estado de subdesenvolvimento e atrasadice mental, caro Engenheiro Sócrates, caro Engenheiro Ludgero Marques, caro Carvalho da Silva?
A culpa não é da chefe da Catarina, não é do chefe da chefe da Catarina, nem sequer é do Governo.
A culpa é de todos nós que seguimos viagem no nosso autocarro, virando a cara, fingindo não ver e preferindo continuar com o cú sentado na indiferença cúmplice.
A empresa onde a Catarina trabalha é pública, e devia constituir referência em matéria de respeito pelos direitos dos seus trabalhadores, nomeadamente o direito à maternidade, que deve ser um dos mais silenciados no nosso país de fantoches.
Não escrevo o nome da empresa pública onde a Catarina trabalha, para a poupar a eventuais dissabores, mas é urgente combater este terrorismo insano, e o primeiro combate é denunciá-lo, apontá-lo a dedo, criando um ambiente de hostilidade pública a empresas que gastam milhões para promover a sua imagem de modernidade de serviço ao cliente, e entre portas sustentam relações de trabalho idênticas às das ditaduras fascistas.
Num país a sério, numa empresa com as cadeiras todas iguais, os chefes da Catarina apenas chefiariam o botão da Rank Xerox, e não consta que esses países sejam atrasados, as empresas improdutivas, ou os direitos sociais esmagados pela absurda irracionalidade da gestão.
Uma gestão sem inteligência emocional e sem sentido de humanidade é tão útil para uma empresa como um guarda-chuva para um hipopótamo.
E o Manel bem pode ir treinando os pontapés, que cá fora espera-o muito mais do que uma bola para chutar. Num país surdo-mudo, quem cala consente, e garanto que se acontecer alguma coisa ao Manel ou à Catarina, terei a resposta mais civilizada possível nesta sociedade medieval.
Deito fogo às cadeiras todas daquela valente merda!


PS: Felizmente não precisei de deitar fogo a cadeira nenhuma e amanhã vou à festa da primeira papa do Manel

3 comentários:

so_luar disse...

És uma inspiração para mim! Fabuloso é pouco para tão sábias e sensatas palavras, tão sarcasticamente articuladas. Queimemos todos as cadeiras também!

Anónimo disse...

Na primeira conversa com o meu novo chefe, depois de saber que eu tinha apenas alguns meses de casada, fui "informada" de que naquele hotel as recepcionistas não "podiam" engravidar. Pois claro está que ao final de um ano e meio de trabalho, passei a fazer parte do feliz clube de desempregados, isto porque a minha linda barriguinha de quatro meses coincidiu com o final do meu contrato de trabalho. Assim é a vida no nosso cantinho á beira mar. Desculpe a intromissão e o testamento que aqui deixei. Adorei o texto.

Rui Pelejão disse...

Olá so luar e dinora. Era só para dizer 1º obrigada por terem tido paciência para ler um texto que estava perdido na gaveta à uns tempos, numa altura que me deu uma fúria por causa daquilo que aconteceu à minha irmã.
Em segundo lugar, dinora, não é intromissão nenhuma e lamento muito ter sido vítima dessa brutalidade escondida numa sociedade machista que se entretém a discutir "quotas" e igualdade de direitos e depois se esquece do essenial - o mínimo de humanidade.
Coragem.