11/09/2004

Um homem sem qualidades

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Jacobino acordou terrivelmente mal disposto. Tomou um banho frio a contragosto (o gás acabara), comeu um prato de corn flakes ressequido com leite azedo.
Teve de vestir um fato com cheiro a mofo e umas peúgas remendadas. Descobriu que as varetas do guarda-chuva estavam retorcidas.
Já na rua, enfrentou o vendaval diluviano e o bulício irritável da manhã urbana.
Parou no café, onde se acotovelou com operários galvanizados pelo fragor do bagaço matinal, para poder chegar ao salvífico café. Bebeu de um gole. Estava frio e cheio de azedume. Tal como ele, Jacobino.
Tal como aquele dia invernoso e frio. Jacobino olhou para o relógio, estava já atrasado para picar o ponto na secretaria da 3º barra da Boa Hora.
Na paragem do autocarro, uma extensa fila de guarda-chuvas agitava-se com o frenesim da espera. Tomou o seu lugar na fila.
A chuva fria percorria-lhe a testa, para serpentear invasiva e gelada pelo colarinho, e afagar-lhe o pescoço com malícia.
Jacobino batia os pés enregelados, sentido o dedo grande em contacto humedecido com o couro do sapato gasto comprado em meia estação num Outlet. Tentava abrigar-se puxando os colarinhos para o nariz, como via fazer nos policiais americanos dos anos 50. Sentia-se um Marlowe derrotado e rendido. O autocarro chega com estrondo, levantando um vagalhão malcheiroso de águas e dejectos da berma que atinge, com salpicos lamacentos a face mal barbeada de Jacobino. A multidão ululante de guarda-chuvas desfaz a fila ordeira para se precipitar em horda bárbara para todos os orifícios abertos da besta metropolitana. Jacobino é projectado para trás com uma carga de ombro de pretalhão grande e untuoso, a fazer lembrar o Lilian Thuram.
Aterra de quatro no passeio. Sente-se vencido, inerte, rendido. Pela janela, uns enormes olhos azuis de uma universitária bonita sorriem-lhe com uma frieza compadecida. A rapariga resgata o olhar comprometido e volta a enfiar o nariz na leitura. O autocarro arranca vagaroso, e com uma lágrima salgada misturada com a chuva, Jacobino reconhece a capa encardida e usada numa edição dos Livros do Brasil, reconhece em tituleira antiga o livro que a rapariga finge ler, finge perceber. “Um homem sem qualidades” de Robert Musil.
Jacobino fica sentado no passeio com olhos marejados de gotas de chuva e de lágrimas. Jacobino desiste e fica sentado no passeio para sempre.
Ainda ali vive, perto da paragem de autocarros, dormindo no passeio, comendo o resto de esmolas e de indiferenças enojadas que se dedicam os vagabundos nauseabundos e a quem decidiu deixar de ser prisioneiro, de ser escravo da normalidade enlouquecida.

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