11/21/2003

Loja de electrodomésticos IV

Soprava um ar frio nas pernas da estagiária

O ar-condicionado estava de novo avariado, soprando uma nortada fria, capaz de rachar a pinha a um urso polar.
Tomé, respingava do nariz aduncado, pingas cataráticas, enquanto berrava:
- Foda- se, alguém desligue o cabrão do ar- condicionado, que não tarda nada tenho o mangalho feito em estalactite.
Ninguém respondeu ao seu tremelicante, pré-hipotérmico e desesperadamente andropáusico apelo, lancinado em bemol de Sinatra dos fiordes .
Era Agosto quente, daqueles de colar a camisa de linho manhoso aos pelos untuosos do peito, e derreter a modorra dos dias na espuma amarelácea das imperiais de esquina.

Tomé estava praticamente sozinho na redacção do "Crime&Castigo", um semanário especializado em assuntos policiais, criminais e paranormais, de inspiração dostoievskiana com tiragem limitada e mentiragem ilimitada.
Todos os outros redactores estavam de férias, ou tinham inventado um dentista na Costa da Caparica, com as brocas empastadas em flúor a serem bondosamente substituídas por caracóis babosos, traçadinhos de cerveja e 7-Up, e soslaios gulosos aos biquinis das pin-up , que deslizavam em piruetas de patinagem onanistica sob as suas "Barbas", como se fossem aspirantes a play-mates do ano em passereles platinadas na baía de Miami.

No terceiro andar de um prédio da Duque de Saldanha, decrépito como as velhas falidas e infalivelmente brasonadas que, grisalhas, grasnavam permanentes nos cabeleireiros das avenidas novas e se engolfavam à hora de maior calor entre os chás da Av. de Roma e as farmácias ascéticas da Av. da Igreja.
Nesse terceiro andar andrajoso estava instalada a redacção do "Crime&Castigo", onde, nas secretárias mancas pelo mastigar carunchoso da traça mangas-de-alpaca, se espalhavam pilhas de jornais e papeladas inúteis, sob a qual assomavam anacrónicos computadores McIntosh, contemporâneos da dentição de leite de Bill Gates.
Nave central da fábrica onde os operários têxteis (vulgo jornalistas), costumavam dedilhar com mecânica de costureira de província, as jocosas e improvisadas notícias, que roçavam normalmente entre a desbragada mentira e a invenção delirante,
- Estamos cá é para vender papel. Tratem de lhes arrimar com esperma e sangue!", ululava em bicos de pés o director daquele pasquim - o velho, sabicho e seboso, Dr. Neves, que Tomé baptizara em sussurro oculto pelo relinchar da máquina de café - o Abdominável Homem das Neves, por causa das camadas de gordura sacarosa que lhe ornamentavam o abdómen, que lhe davam a proeminência de um paquiderme engarrafado numa calças de pregas, que mais pareciam um barril de tinto, daqueles que servem com brio nas paredes das tascas de serradura no chão e papagaio especialista em caralhadas e insultos, debitadas no pêndulo marialva, colocado sobre a prateleira das garrafas de ginja e das bolachas Maria (ufa!!! que frase interminável).

As "Tílias e as Tetas", já na sua sétima edição, assim se chamava o título do romance picaresco e pornostálgico do Dr. Neves, assinado sob o pseudónimo de Doc Snow, e cujo sucesso editorial nas bancas de lucro pornógrafo e no circuito hard- core nacional, lhe tinham valido umas massas, suficientes para abrir aquele pasquim que sobrevivia há já cinco anos, e para preservar a cota no cinema Animatógrafo, cuja gerência partilhava com o seu sócio Aparício, um ex-proxeneta do Bairro Alto, convertido em empresário da noite, capataz de boites, casas de putas e strip-clubs, que ele inundava com "material de fabrico russo, brasileiro, vietnamita e ucraniano, tudo conas da melhor qualidade, com o selo de garantia passado pelo bacamarte do Aparício para aprovação sanitária. Comigo não há cá tretas, só tetas !" costumava bradar para o seu amigo Neves em gargalhadas espaventosas, que faziam tilintar de terror as pedras de gelo das "jardas" de uísque, que os dois amigalhaços costumavam abater como moscas num curral de porcos.

Neves ripostava ufanamente "nada como uma cona mansa para agitar a pança", ao que os dois se escangalhavam em risota de fanfarrões imberbes, como quando ensaiavam escapadelas de 50 paus na algibeira à Brocheway Street, expressão com que piamente baptizaram a Defensora de Chaves.

As únicas coisas novas naquela redacção podre, eram o ar condicionado de fabrico coreano, oferta do Aparício, que normalmente fornecia putas a empresários asiáticos de visita a Lisboa e que recebera aquela geringoça friorenta de um tal Mr. Yó-Yó - e as pernas da Marília, a estagiária com muito futuro no manejo da Rank Xerox e no traquejo dos cafézinhos e bombokas para o chefe.

Tudo o resto era uma escabrosa loja de velharias andrajosas. Barrigudos sisudos a suar em cataratas de testosterona que lhes provocavam as dactilógrafas besuntadas a baton rouge.

Naquele dia, Tomé asfixiava com o frio que soprava do ar-condicionado, visivelmente desadaptado ao clima Mediterrânico. Na sala do director, Dr. Neves e Aparício ressonavam ferozmente sobre os restos mortais de uma dúzia de garrafas de whisky subtraídas ao MiniBar do Motel requinte enquanto na sala da redacção Tomé dava ao dedo, e Marília mascava pastilha elástica, polia as unhas e espreitava uma revista de mexericos.
Tomé acabava uma notícia sobre um talhante que fora encontrado morto numa pastelaria, envolto em pastéis de nata cremosos como mortalhas, quando ouviu uns passinhos asiáticos como os que soam nos filmes do Bruce Lee.
Olhou para trás e viu o ar-condicionado com um subserviente sorriso amarelo, dedicando-lhe uma extensa vénia - «Disculpi Sinhol, pol acaso não tem uma pastilha doutor Bayard, pol causa da tosse, é que apanhei uma constiplação daquelas». Tomé julgou que estava a alucinar, correu para a secretária de Marília beijou-a sofregamente nas pernas, indiferente aos seus gritinhos divertidos e lascivos, e de uma golada bebeu o conteúdo do frasco de verniz Avon, caíndo redondo escarlate no chão.

A história da sua morte fez o «Crime&Castigo» alcançar a sua maior tiragem de sempre, com vendas extraordinárias que permitiram ao Sr. Neves e a Aparício internacionalizar os seus negócios de postíbulo, com ramificações no Cajaquistão,Gronelândia e Mongólia Exterior.

Marília e o ar condicionado Samsung, apaixonaram-se perdidamente e vivem em concubinato numa ilha tropical - ela faz-lhe chás de hortelã quando ele se constipa, e ele faz-lhe cócegas nas pernas e nos dedinhos dos pés, quando sopra devagarinho o seu friozinho maroto.

Sem comentários: