Se não é um filme de cowboys, é um filme de amor
Lá longe em Damasco, o galã vilão vestido de negro bebe chá e explica às suas amigas que há um filme que vai estrear na Cinemateca.
É Lost West, o primeiro e provavelmente o último western português.
E fuma com um travo amargo de saudade. Carlito Quijote, o pistoleiro frio e implacável do Bando de Beralt é aliás Carlos, que deixou o seu cão Átila em Portugal aos cuidados do Pai Fernandes e emigrou com a mulher para a longínqua Síria.
Um artista, completo, íntegro, inquieto, corajoso, experimentador, solitário, que teve de emigrar para um país onde os cavalos o mordem, que por cá há mordidelas piores e para a sua arte e para o seu talento apenas havia corpos nodosos de celulite e banhas para massajar a preço de escravo num qualquer spa de novo riquismo xunga.
Havia o trabalho como animador do Lar de Idosos de Belmonte, onde devolvia sorriso aos olhos dos nossos velhos, mas onde não havia lugar para o seu humanismo e para o seu atrevimento. Ali, só campeia o funcionalismo da mudança das fraldas e da frieza de enfermagem. Num lar de velhos não há lugar para o talento dos corações bondosos. Só há merda, abandono e morte.
Mas nos copos embutidos no saloon El Passadiço ou nos duelos fraticidas com Kit Carson no caudaloso Zêzere, Carlos não é um escorraçado, ele é um príncipe. Um príncipe de cabedal preto, lunático e lúcido, altivo e cruel. Um príncipe que morre a morte perfeita, aquela que nos imortaliza. A morte no cinema.
Miguel pede para sair mais cedo do trabalho, logo há noite estreia do Lost West na Cinemateca. É um momento importante para ele, é a sua outra vida. A dele, a nossa, a secreta, a real. Miguel foi corajoso agricultor. Quis criar ovelhas e apanhar azeitonas e viver do que a terra dá, e ficar na terra que é sua.
Mas a terra é puta e os homens são cabrões, e para ganhar a vida Miguel teve de abandonar a sua terra e deixar as suas ovelhas. Mas Miguel é mais do que o engenheiro aplicado, ele é Angel, pistoleiro, aventureiro, artista de cinema. O punhal cravado e perdido de Kit Carson é o punhal da sua libertação.
Angel é inseparável companheiro de Adriano, menino-homem que vive em auto reclusão. Um dia apanhou um avião para Tóquio porque se apaixonou por uma japonesa. Foi sem dinheiro, voltou com mais um bocado de mundo, ainda assim infinitamente mais pequenino que o seu mundo – o dos sonhos.
Ele é Black Jack, um dos arcanjos do mal de Lost West, sempre com a coronha da winchester pronta para abrir a cabeça a um barman ou a um juiz.
Leninha olha para o relógio, para a hora de saída no seu emprego numa respeitável instituição desse Estado sem roque que é o nosso. Jurista aplicada, competente. Uma mulher-menina a quem a lucidez e pragmatismo não asfixiou o coração - generoso, cuidadoso e atento. Hoje tem pressa de arrumar os processos cedo porque logo estreia o Lost West e ela canta. Ela devia cantar sempre. Ela é Maria, a “sweet” Maria, a menina esperança, a luz ambígua nas trevas de Lost West. Ela é nossa voz, a voz que nos embala no dueto com Jerónimo.
Leninha telefona ao Xico, colega de faculdade de Direito e o juiz Holmes do filme.
- Ó Xico despacha-te que há garrafões de tinto do Fundão às oito no terraço da Cinemateca!
- Já vou a caminho, já vou a caminho.
Jerónimo e Zé Emílio discutem à porta do Núcleo Sportinguista do Fundão. Já estão atrasados por causa das minis do Zé Emílio (ou serão do Jerónimo?) e o Renault a cair de podre do Jerónimo não dá para andar nas horas do caralho na “auto route”.
– Ó Zé despacha-te caralho pá que a estreia é às 9 e meia! Diz o Jerónimo já a fumegar.
Jerónimo e Zé Emílio são membros da banda “Jerónimo e Cro Magnon” do Fundão. Boa música, bons copos, boas aventuras, bons cowboys, que cavalgaram horas a fio, minis a fio, na banda sonora do Lost West. Vão chegar tarde, mas vão chegar, com as guitarras.
Bruno também vem. Este foi ao contrário, foi de cá para lá. Da margem sul para as entranhas de Portugal a ajudar a salvar o interior. Um romântico tem de ser um barman num filme, e mesmo que o interior não se salve ele lutou. Agora é o barman Sam. Avia copos, limpa o balcão, filosofa e leva coronhadas como compete ao bom filósofo e ao melhor romântico.
Quem ficou lá foi Beralt. O vião, o espírito do mal, o príncipe Satã da terra que engole os homens. O devorador de recursos, o profeta do apocalipse. Por lá onde ficou, na vida real, a tal que também é uma ficção onde todos somos actores, por lá ficou a planear como salvar a sua terra da desertificação, do abandono, do esquecimento.
Por lá percebeu que se arranja mais inimigos a tentar fazer o bem do que a praticar o mal. Paulo, o meu amigo, companheiro de cavalgada de longa poeira de Canyon, como dois velhos cowboys irascíveis e amargos com a vida, mas capazes do humor, essa coisa que une os homens, como nenhuma mulher será capaz de se lhes unir.
Hoje vem, e vamo-nos rir os dois, como sempre, para sempre.
Ele e eu, Kit Carson, ou pior, Rui Pelejão, que renasci para ser cowboy para sempre Trata-se de uma arma poderosa para levar pela vida.
Saber que debaixo do fatinho de jornalista de carros que escreve umas artigalhadas na internet, saber que por baixo desse fatinho amestrado há o colt 45 de Kit Carson. Saber que todos podemos ser um pistoleiro falhado e abater vilões como se abatem copos de whisky, no cinema e na vida real, ou exactamente ao contrário.
E essa arma que uso a tiracolo foi-me dada por Tiga. O autor de Lost West, com toda a solitária dignidade que a palavra autor carrega. Um autor que sobe ao telhado da cidade para declarar o seu amor ao cinema, o seu desprezo pelos vendilhões e o faz com a voz da coragem que é subversiva, porque não há nada mais subversivo do que a verdade.
E Tiga? E Hugo? Onde estão eles? Tiga diz que só consegue cagar em casa e na cinemateca. Nunca ouvi tamanha declaração de amor a uma casa de cultura. Sim a cinemateca é a outra casa dele, a verdadeira.
A dele e a do Hugo. Estão a beber alarvemente vinho do Fundão na esplanada da cinemateca, vinho que o Pai Fernandes trouxe. Porque se cozinhar é amor, beber em camaradagem é sexo e do bom.
Tiga está nervoso, mesmo que disfarce com indiferença e tinto. Vai mostrar (que é diferente de exibir) a sua primeira longa-metragem na Cinemateca. Hugo que partilhou a montada das curtas-metragens da adolescência, a montagem de Lost West e deu a voz cavernosa e sardónica e Beralt, Hugo inspira confiança serena a Tiga.
São dois terroristas de génio. Dois dinamitadores com fígado de Peckinpah, com o coração dos filmes de Ford. A Cinemateca abriu-lhes as portas, espero que tenham seguro contra anarquistas e incendiários. Espero que tratem o génio novo como todo o génio novo deve ser tratado – mal e à paulada.
A porrada enrobustece o génio.
Lost West é o filme de Tiga, ou aliás do jovem e brilhante jurista não empregado (e ainda bem), que podia ser um ícone de uma geração alegadamente perdida, mas que é um iconoclasta que ama o cinema e apenas quer fazer os seus filmes sem que ninguém lhe foda a cabeça (a não ser o seu pai, que esse tem direito a isso).
Com o seu cinema de orçamento nenhum e a sua escrita pura e brutal conseguiu libertar-nos a todos, gloriosa tribo de falhados, instalados, alienados; indomável quadrilha selvagem. Liberto-nos pelo cinema, para o cinema.
E ali, mais logo, na casa do cinema, será muito mais que um western, será um filme de amor.
E ali estaremos todos, o Diamantino e as suas nuvens e trilhos napoleónico, Bruno a sua câmara, o seu poker, os seus disco de Billie Holiday, a sua mulher, Marta, e o filho Ricardo, o bebé nascido no amor do Lost West. E ali estará o Pai Fernandes a ressonar de orgulho na quarta fila, e o Souto e as suas esquisitices técnicas, e o Zina e o Leonel e o Vitor, e até o cavalo Eleven e o cão do Leonel, e todos os que participaram nessa grande e inesquecível aventura que foi fazer o Lost West.
Como se pode escrever sobre o amor? Como se pode escrever sobre algo que se ama tanto? Como posso escrever sobre a minha avó Piedade e todas as mulheres que amo? Como posso escrever sobre os meus amigos como se fosse um longo abraço fraterno? Como posso escrever sobre o filme da minha vida?
Como posso escrever sobre Lost West?
Não posso.
Por isso calo-me, porque o silêncio de uns olhos húmidos de felicidade é a melhor forma de escrever. Sem palavras.
Hoje estaremos tão juntos como sempre, para sempre.
É apenas mais um dia de amor. Porque o cinema é amor.
Para ti Tigana, Leninha, Bigi, Carlito, Pai Fernandes, Carneiro, Adriano, Bruno, Bruninho, Leonel, Marta, Hugo, Xico, Diamantino, Jerónimo, Zé Emílio, Souto, Zina, Vitor. Para todos os amigos da quadrilha selvagem, bem hajam pela cavalgada pelo Oeste perdido.