1/26/2008

Reportagem - O dia em que o Cardeal perdeu o comboio

A todo o vapor

Viagem à história dos comboios em Portugal, desde a tarde em que o Cardeal Patriarca ficou apeado na cerimónia inaugural do caminho-de-ferro entre Lisboa e o Carregado até ao Alfa Pendular e os comboios históricos que galgam as margens do Tejo e do Douro



«Comboio descendente
No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela
Uns calados para os outros
E outros a dar-lhes trela
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão»

Fernando Pessoa


É inevitável. Viajar de comboio induz uma sugestão cinematográfica. Faz-nos logo pensar em crime ou romance, ou nas duas coisas.
Esperamos sempre que uma qualquer Eve Marie-Saint se sente ao nosso lado e nos envolva numa intriga internacional, como no filme de Hitchcock, ou então que Hércule Poirot nos convoque para o furgão-bar para desvendar o nome do criminoso no Expresso do Oriente, enquanto enrola o bigode e beberica um xerez.

O homem ainda não inventou um meio de viajar que possa bater o comboio em romantismo. Como escrevia Agustina Bessa-Luís: «O comboio sempre me pareceu ter qualquer coisa de profético. Abria-se a portinhola de uma carruagem. Tratávamos de divisar os passageiros e explorar a réstia de conforto que podíamos partilhar. Era o prelúdio duma viagem que podia ser o primeiro capítulo de uma história.»
Num comboio o tempo ganha outra medida, outro sabor. É assim desde que uma locomotiva expirou as fagulhas que se espalharam pelos céus de Liverpool em 1825, na abertura da primeira linha férrea do mundo que ligava a cidade portuária a Manchester. A invenção do motor a vapor do escocês James Watt era assim incorporada num meio de transporte que viria a revolucionar as comunicações e um mundo em pleno processo de industrialização.

Sentados na confortável carruagem do Inter-cidades, bilhete de destino Beira Baixa, com todas as comodidades e tecnologias modernas, percorremos aquele que foi também o primeiro troço de linha férrea do nosso país, ligando Lisboa ao Carregado.
A gare de Santa Apolónia, padroeira dos dentistas, fica para trás, e o Tejo camarada insinua-se no olhar, numa viagem de braço dado por esse rio acima, pela história e estórias dos comboios.

Peripécias do progresso
A CP comemorou o ano passado 150 anos sobre o nascimento do caminho-de-ferro em Portugal. Passámos em alta velocidade pela estação de Braço de Prata, nos subúrbios industriais de Lisboa e dedicamos um minuto de misericórdia ao Cardeal-Patriarca e altos dignatários da nação que ficaram apeados na viagem inaugural do comboio em Portugal no dia 28 de Outubro de 1856.
A história é aliás bem portuguesa …
A cerimoniosa viagem foi organizada com pompa e circunstância como um hino ao progresso alavancado pelo Partido Regenerador, então no poder, e pelo seu “maquinista” de serviço, Fontes Pereira de Mello.
O dinâmico Ministro do Reino foi o grande impulsionador da política de “melhorias materiais” que se consubstanciou no arranque do projecto ferroviário, para o qual Portugal partia já com mais de duas décadas de atraso.
A empreitada e exploração da primeira linha de comboio em Portugal foi entregue à Companhia Central Peninsular dos Caminhos de Ferro de Portugal, (criada em Londres a 14 de Maio de 1852), do inglês Hardy Hislop.
Foi também um projecto polémico que dividiu as elites pensantes e incendiou o clima intelectual do nosso país, com a famosa polémica de Alexandre Herculano e Lopes de Mendonça, o primeiro diabolizando o comboio e as suas consequências nefastas para o “municipalismo” e para uma certa pureza moral do mundo rural; o segundo endeusando essa ferramenta de progresso, da livre circulação de bens e de ideias, que de facto se iria concretizar.
O progresso sempre foi em Portugal pomo de discórdia, como se vê pela polémica gerada em torno do TGV, o comboio de alta velocidade que Portugal pretende lançar nos próximos anos.

A perdição do Cardeal

Mas voltemos à manhã de azáfama que levou multidões à beira da linha para ver passar esse cavalo do progresso ou máquina diabólica, conforme as opiniões: “Tenho a certeza que foram inspirados pelo Demónio! Não o digo a rir. Mas vejam aqueles uivos, aquele fogaracho, aquele fragor! Ai que arrepia!”, dizia a beata D. Josefa ao benevolente Padre Amaro de Eça de Queirós.
O Rei D. Pedro e os barões e baronetes da nação enchiam com garbo e curiosidade as carruagens do novo meio de transporte. Infelizmente as duas primeiras locomotivas adquiridas para o serviço dos caminhos-de-ferro eram sucata da qual os ingleses se desfizeram com alívio. E, no regresso da viagem inaugural, quando se entoavam loas ao comboio e aos seus méritos, perto de Sacavém, partiram-se as tubagens de vapor de uma das máquinas, obrigando-a a deixar pelo caminho parte da comitiva, incluindo o Cardeal-Patriarca.
A oposição ao Partido Regenerador não tardou em rosnar sarcasmo em “O Português”: - «A Regeneração escolheu locomotivas à sua imagem: podres como ela!»
Um bom livro é uma companhia indispensável para uma viagem de comboio. Oscar Wilde costumava dizer que levava sempre o seu diário para ter uma leitura extraordinária no comboio. Nós preferimos as deliciosas memórias da Marquesa de Rio Maior, que recorda com sublime ironia o dia em que se assistiu ao nascimento do caminho-de-ferro em Portugal: “Finalmente, avistámos de longe um fumozito branco, na frente de uma fita escura que lembra uma serpente a avançar devagarinho. Era o comboio! (…) Vinha festivamente embandeirado o Wagon em que viajava El-Rei D. Pedro V. O comboio parou um momento na estação, de onde se ergueram girândolas estrondosas de foguetes; vimos El-Rei debruçar-se um instante, e fazer-nos uma cortesia; (…)
A máquina, escusado será dizer, das mais primitivas, (parecia um enorme garrafão) não tinha força nem idade para puxar todas as carruagens que lhe atrelaram; e fora-os largando pelo caminho. Algumas, de convidados, nos Olivais. O Wagon do Cardeal Patriarca, e do Cabido, ficou em Sacavém; mais um, recheado de dignatários, ficou no desamparo na Póvoa (…) Esses desprotegidos da sorte, semeados pela linha ao acaso das debilidades da tracção acelerada, só chegaram alta noite a Lisboa, depois de ousadíssimas aventuras, que encheram durante meses os soalheiros oficiais. Até andou gente com archotes, pela linha, em procura dos náufragos do Progresso.”


A banhos em Cascais

Apesar das peripécias da primeira viagem, o comboio do progresso arrancou a todo o vapor na segunda metade do séc. XIX, numa primeira fase através de contratos de concessão e exploração a empresas privadas e mais tarde (a partir de 1870) com o Estado a assumir as “despesas” de desenvolvimento da infra-estrutura ferroviária, em virtude dos baixos resultados de exploração que no dealbar do séc. XX desinteressaram a maioria dos investidores privados. A opção por dotar o país de artérias ferroviárias sobrepôs-se a todos os outros meios de transporte; em detrimento, por exemplo do investimento na navegabilidade dos rios, nas estruturas portuárias, ou mesmo da construção de estradas, cujos principais eixos vieram decalcar os traçados dos caminhos-de-ferro.
A linha para Cascais, inicialmente até à Cruz Quebrada, foi das primeiras a ser criada, tornando aquela localidade uma estância balnear de eleição dos lisboetas que “copiavam” assim os hábitos da família real e da aristocracia que fazia férias em Cascais.

A conclusão da linha do Norte e da ligação a Espanha obrigaram à adopção da chamada bitola ibérica, diferente por exemplo da francesa, porque ainda pairava a sombra das incursões napoleónicas, e esperava-se que a República de Bonaparte pudesse vir por aí abaixo, tomar a rédea da Monarquia Constitucional.
Não vieram fardas nem canhões, mas ideias, já que o comboio aproximou Portugal da Europa e das correntes de pensamento libertário e humanista. «Com o comboio não foram só as ideias a circular mais rapidamente. A melhoria das comunicações aproximou o campo dos centros urbanos e criou condições para o aparecimento de um mercado nacional. Para quem vivia confinado aos limites das suas aldeias o comboio foi o meio de alargar os horizontes, por vezes de um modo drástico, acabando por vezes, a viagem do lado de lá do oceano», conforme explica a historiadora Maria Magalhães Ramalho.

O lançamento das bases da infra-estrutura ferroviária marcou também a entrada na era
moderna da nossa engenharia, forjada nas complexas obras, nomeadamente para a travessia de rios, como a monumental Ponte D. Maria Pia no Porto, que permitiu a ligação ferroviária entre as duas principais cidades do país.
O esforço ferroviário foi de tal ordem que em 1910 a generalidade das linhas que ainda hoje constituem a espinha dorsal do nosso sistema ferroviário estava concluída. A partir daí, um novo meio de transporte conquistava Portugal – o automóvel, e o comboio foi perdendo a sua influência progressista, mas nunca o seu encanto e o seu papel determinante na circulação de pessoas e bens em Portugal.


Reviver o passado no Douro
O Intercidades chega ao Entroncamento, artéria principal do sistema ferroviário nacional. Apeamo-nos para visitar um pouco da história da ferrovia em Portugal, já que aqui se ergue o embrionário Museu Nacional Ferroviário, que vai guardar os tesouros e os engenhos que escreveram um século e meio de história dos comboios no nosso país. Com um valioso espólio disperso por vários núcleos museológicos no país, a CP pretende concentrar aqui a sua memória, se quisermos, a sua Torre do Tombo. Desde as pioneiras locomotivas a vapor, às carruagens reais, passando por material de fiscalização de linha, fardas do início do século XX, o Museu Nacional Ferroviário é um projecto ambicioso e uma montra de eleição que pretende espelhar mais de um século e meio de história.
Mas é também uma história viva que a CP e alguns operadores turísticos pretendem recriar com os comboios históricos na linha da Beira Baixa, à semelhança do que acontece com a Linha do Douro e do Corgo, em que antigas locomotivas a vapor e carruagens “vintage” restauradas, recriam o espírito e o encanto das viagens de comboio do início do Século XX. Com um fiozinho branco desenhado no horizonte, o comboio vai irmanado com o rio, por esse país adentro, seja no Douro vinhateiro das estações de azulejaria deslumbrante, como a do Pinhão, ou pelas margens do Tejo, entre túneis, castelos de Almourol, e o casario das vilas ribeirinhas que saúdam o comboio que passa, hoje como há 150 anos.

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