3/14/2007

Observatório do palheiro

"Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha de horizonte.O que eu vejo é o beco."
Manuel Bandeira, “Poema do beco”


O palheiro da quinta é um ecossistema. Dormitório das cabras, quartel de retaguarda da legião de gatos de vadiagem, “resort” de escaravelhos da batata que se saracoteiam com a graça de “pin-ups” patinantes em Palm Beach.
O palheiro da quinta é um mundo sombrio e bafiento, atulhado de bicicletas pernetas, sombrinhas rotas, cavacos de lenha sisudos, estrume, rações e víveres de sustento dos poucos vivos que ainda vão emprestando ruralidade a uma quinta envelhecida, tanto como quem a amanha.
Mas o que faz de um palheiro, um palheiro, é a palha.
A palha onde se aninham as carraças, pulgas, ratos, e por vezes alguma cobra hibernante.
Antes dos colchões ortopédicos, a palha era cama e multibanco. Quem nunca dormiu no pináculo um monte de palha, com a lua como cobertor, não sabe a que sabe a palha, nem a vida.
A palha que enchia os colchões antigamente - os tais listados que deram o nome à claque do Atlético Madrid (os colchoneros) -, é hoje uma espécie em vias de extinção, tanto como os lagartos que se estendiam ao sol no alto dos muros, ou as borboletas que cirandavam nas camélias.
Extintos pelos pesticidas, pela morte lenta da agricultura de subsistência, pela cultura do consumo Lidl, com iogurtes estrambólicos e sumos sulfurados de conservantes.
O aconchego incómodo da palha é hoje uma recordação antiga, como as fotografias de família guardadas na escrivaninha, e que só de lá saem quando algum ente querido se fina, para uma consulta nostálgica aos dias felizes.

É talvez por isso, que o nosso primeiro-ministro diz que não há rabos de palha no PS, a propósito das propostas de combate à corrupção legadas por João Cravinho.
Com aquele seu semblante carregado de homem empossado por um destino messiânico que não se compadece com minudicências, José Sócrates decretou a ausência de rabos de palha num partido, que há semelhança do país, é um autêntico palheiro.
Portugal é um palheiro de corrupção activa, passiva, cúmplice, “voyeurista”. É um palheiro onde os escaravelhos da política se passeiam ufanos pelos cargos, benesses e negociatas que a camorra partidária lhe estende; é um palheiro onde carraças-chupistas sugam à descarada; onde as cobras esguias dos negócios e das empresas se furtam à justiça ao fisco e já agora às OPA`s; é um imenso palheiro onde os gatos se desunham por um favor, uma cunha, um palavrinha, um “toque” à pessoa certa, e certamente com poder.
Portugal é um palheiro onde as sombrinhas rotas não conseguem tapar o sol, e por isso desviamos os olhos, metemos as mãos nos bolsos e assobiamos para o ar.
De acordo com um estudo conduzido por investigadores do Observatório para a Corrupção do ISCTE os portugueses acreditam que há um problema generalizado de corrupção, mas a maioria é complacente, destrinçando a corrupção que envolve dinheiro, da outra que “apenas” envolve tráfico de influências, favores, cunhas, compadrio, nepotismo ou a forma mais generalizada de corrupção nacional – o jeitinho.
Os portugueses não são complacentes com a corrupção; são cúmplices. Estão dispostos a atirar umas pedrinhas para outros telhados, mesmo sabendo que as suas clarabóias são frágeis.
Indignam-se com a corrupção na administração pública, nas autarquias, no futebol, no emprego; mas essa iracunda indignação cala-se que nem um ratinho no momento de obter uma cunha para a filha recém-licenciada entrar para os quadros da câmara municipal, ou quando reelegem o seu edil, acusado de irregularidades, mas que tantas novas rotundas e relvados sintéticos deu à sua terra.
A indignação com a corrupção em Portugal só serve para enxofrar o vizinho e acaba na soleira da nossa porta, como Testemunha de Jeová barrada pelo cão de guarda.
Por isso, e como bem explicou António Barreto no “Público”: «Não se pode confiar na opinião pública ou na sociedade civil. (…) além de impotentes, vivem bem com a corrupção. Condenam a dos outros, mas acarinham a sua.»
Consciente dessa lassidão e complacência, o Governo prefere varrê-la para debaixo do tapete e entregar-se a outras batalhas mais urgentes e tonitruantes, como o encerramento de maternidades e de urgências de hospitais pacóvios; o choque tecnológico para ligar a malta toda à Internet a ver vídeos dos Gato Fedorento no Youtube; ou o plano Simplex (bom nome para uma marca de papel higiénico) para poupar post-its e agrafos ao dispensário real.
Montado num TGV-alado e nessas medidas de fundilho das calças, Portugal vai finalmente alçar-se à sela da modernidade, e com um maquinista do calibre do nosso, chegamos à Finlândia num tirinho. Não tardará muito para estarmos todos ligados à Internet de banda larga, a comer ostras e a beber Moet&Chandon com o nosso crédulo e complacente rabo sentado na palha.

O choque ético que devia ser a primeira batalha de um político moderno e determinado, como é o nosso maquinista de serviço, esse fica para as calendas.
A corrupção é o sustento da nossa economia paralela, a nossa mais poderosa vaselina social, o nosso Simplex de sempre para tratar da papelada, e é, por muito que custe ao nosso maquinista, o estrume onde prospera o sistema político português.
Para acabar com o palheiro da corrupção portuguesa não basta palheta politiqueira; não basta criar um observatório para a corrupção (que aliás já existe), porque como o próprio nome indica, um observatório serve para observar, e isso é o que fazemos há séculos.
Para acabar com o palheiro, basta coragem e um fósforo. Precisa de lume, caro engenheiro José Sócrates?


PS: Publicado no JF um deste dias, e reproduzido porque não sou assinante, e esta é uma forma tão boa como outra qualquer de organizar o meu arquivo

2 comentários:

Unknown disse...

Que jornal é esse?

Rui Pelejão disse...

O JF é o Jornal do Fundão e está no balcão (links) para quem quiser ler as gordas