1/31/2007

Interrupção voluntária da inteligência

“Desejo tanto que respeitem a minha liberdade que sou incapaz de não respeitar a dos outros.”
Françoise Sagan


Já começou a peixeirada. A histeria pré-referendo abancou na sociedade mediática, e por contaminação, na vida quotidiana e real das pessoas. Mesmo quando se trata de um tema complexo e sensível como o aborto clandestino, que de acordo com dados da Associação Portuguesa de Planeamento Familiar afecta anualmente 18 mil mulheres, o nível de debate roça o da praça e a linguagem de um vulgar carroceiro.
No meio da algazarra, pouco importa o esclarecimento, o respeito pela opinião dos outros, e acima de tudo, o respeito pela dignidade da vida humana, que é obliterado nesta campanha abjecta.

A radicalização do discurso, procurando extremar posições e fazer saltar os “inimigos” das trincheiras, foi a táctica adoptada por alguns partidários do “Não” face à sua desvantagem numérica (pelo menos a julgar pelas sondagens de há dois meses).
E a julgar pelas últimas sondagens, esta estratégia surtiu os seus efeitos, porque apelou aos instintos básicos do tuga – a mesquinhez, o preconceito e a moralzinha de pacotilha.
É sintomático que os campanhistas do “Não” tenham abandonado a defesa da vida do feto como objecto central das suas teses, colocando a tónica na questão economicista.
É uma lógica de impostores que decerto se oporiam ao tratamento de toxicodependentes com metadona, ou até à comparticipação em medicamentos para doentes da SIDA. São argumentos que qualificam quem os produz.
Os impostos também são meus e prefiro que sejam utilizados com esses fins, do que redistribuídos entre os partidos ou para pagar chorudas indemnizações às administrações da Caixa Geral de Depósitos, ou mesmo ajudar a financiar campanhas da índole desta.
Com acesso a meios financeiros pouco habituais na dita sociedade civil, a campanha do “Não” conseguiu mobilizar a sociedade pacóvia e atávica; a mesma que na sua vidinha pessoal comete todo o tipo de sacanices e que espasma de indignação com a ideia dos seus impostos (os tais que evita pagar) irem financiar clínicas de aborto espanholas.
Uma indignação esbaforida e barriguda, que porventura é a mesma que esfrega a pança nos lençóis de um bordel de má catadura em Ciudad Rodrigo.


As vozes tonitruantes da campanha do “Não” são do calibre de uma sinistra ratazana de sacristia como o Abominável César das Neves, que profere impunemente barbaridades como esta: “A vitória do sim torna o aborto tão normal como comprar um telemóvel”; outro diácono dos remédios, Sarsfield Cabral, vocifera por seu turno que o aborto será tão fácil como ir de férias para o Brasil; enquanto um bispo ébrio de ódio compara a descriminalização do aborto ao enforcamento de Saddam Hussein.
Perante o silêncio cúmplice de mais respeitáveis e moderados defensores do “Não”, só me resta concluir que partilham estes argumentos sacripantas, e em vez de colocarmos esta “querela” num plano de consciência individual, devíamos era sugerir que dessem mais um apertão no cilício.
Como se vê, também não passo imune à febre nacional do insulto, como também não o fizeram os paulatinos do “Sim”, com o tele-evangelista Louçã e o seus acólitos bloquistas a empunhar o estandarte de uma cruzada politicamente correcta, ou melhor politicamente interesseira, no sentido de ressuscitar um partido tagarela e inútil.
O ataque jacobino que alguma esquerda decidiu fazer à Igreja Católica a pretexto da sua posição pública sobre o referendo é tão previsível e desajustado, como no geral esta esquerda luminária é.
A Igreja Católica tem, à luz da sua doutrina, toda a legitimidade de se manifestar publicamente contra a interrupção voluntária da gravidez, e mesmo de vincular os seus crentes a esse “dogma”. Aos católicos resta acatar ou não o guionismo moralista da sua fé.
Aos outros, que nasceram no catolicismo mas agora professam o narcisismo (piada roubada a Woody Allen), os assuntos da Igreja e a forma como esta faz catequese, pura e simplesmente não lhe dizem respeito.
Aliás, é de sublinhar a moderação e sensibilidade com que o Cardeal Patriarca de Lisboa expressou a sua opinião sobre um tema tão delicado, contrastando com as afirmações grotescas com que alguns dos seus prelados e “mujahedins” da Opus Dei conspurcaram o debate.

Mais preocupante do que o folclore habitual num país atrasado mental, são os sintomas que perpassam deste referendo - A tentação do totalitarismo, a intolerância e a apetência por um sistema de escrúpulo “orwelliano” em que a sociedade organizada em torno de um “bem comum” se permite a estropiar e sacrificar o património mais valioso do ser humano – a sua liberdade individual.
Como Graça Franco defende, o referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez é uma questão civilizacional, mas não nos termos que ela julga correctos e até convenientes.
Não se trata de “defender a vida” ou uma questão de saúde pública como advoga a esquerda-higiénica. Trata-se de criar fronteiras à liberdade individual. Eu acredito que o nosso corpo e até o uso que lhe damos são o nosso último santuário de liberdade individual. Não é de estranhar que é sobre ele que ao longo da história da humanidade foram exercidos flagelos, punições e torturas como forma de submeter o nosso livre-arbítrio ao jugo dos “valores civilizacionais” que em tempos mandavam pessoas para a fogueira porque acreditavam que o Sol girava em volta da terra.
Em pleno século XXI anda para aí muita boa alminha com fósforos no bolso, prontos a atear uma fogueira a todos aqueles que não se convertam à sua visão, aos seus dogmas e ao seu totalitarismo moralista.
Toda a moral é relativa e instrumental, e por isso prefiro a ética da liberdade, cuja única fronteira plausível é a responsabilidade social.
Despenalizar a interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas é uma forma de dar às mulheres do nosso país a soberania sobre o seu próprio corpo, por isso mesmo nem acho que esta seja matéria referendável. Mas já que infelizmente é por culpa de um PS calculista e cobardolas, votar “Sim” no referendo é também uma forma de repudiar todos aqueles que fizeram uma campanha ordinária, machista e injuriosa, tratando as mulheres que recorrem à interrupção voluntária da gravidez como libertinas, levianas e lascivas.
O mais obsceno de tudo isto é que nenhum dos proeminentes líderes da campanha do “Não” ou do “Sim” teria de passar pela experiência traumática de um aborto clandestino, porque todos eles teriam desafogo económico para ir fazer o desmancho a Espanha ou a qualquer outro país civilizado da Europa.
É essa altivez da moral burguesa e desligada da miserável realidade, que por vezes torna este país irrespirável.

Publicado no JF um destes dias

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