5/29/2006

Abelha no chuveiro



O som do cortador de relva não é bem o cheiro de napalm pela manhã, mas quase.
A relva decepada emana um cheiro bruto a seiva que entra pelo estore entreaberto e me dá a volta ao estômago.
“Don`t walk on the grass, smoke it!” Já tive uma t-shirt dessas.
Sempre gostei de t-shirts com atitude. Tive uma que dizia “kill all artists”.
Era de um artista plástico americano e a estampa era uma pistola de pequeno calibre, como aquelas que as vamps escondiam na bolsa, nos velhos filmes de Hollywood.
Louras platinadas e mulheres fatais com gatilho mais fácil que cama.
Robert Mitchum conhecia-as como os nós dos seus dedos tatuados de “love and hate”, mas voltava sempre a desfalecer no abismo do desejo, e a passar de caçador a peça de caça.
Em “O Arrependido” de Tourneur foi presa fácil de Jane Greer.

Nesse filme descobri finalmente como distinguir Robert Mitchum de Kirk Douglas, ambos vítimas da predadora. A confusão de identidades devia-se à cova do queixo. Mas, Kirk tem também as faces macilentas, com uma acentuada depressão, tal como esse ícone do vilão western – Jack Palance.

Esta manhã sinto-me um “zombie”. Continuo a pensar que as duas únicas razões válidas para devolver a vida a um dorminhoco são a fome e o desejo.
De resto, não conheço um bom motivo para tirar o cú da cama.
Um mandrião em vale infértil encontra sempre bons pretextos para prolongar a estadia no colchão de última geração, enroscado em lençóis que são a extensão natural do corpo nú e quente.

Lá fora o triturador de relva prossegue o seu sistemático massacre jardineiro, com um som semelhante ao de uma invasão de blindados na II Guerra Mundial.
Existe uma espécie de conspiração matinal para destruir o último reduto do sono.
Um mundo-despertador, vigilante e austero que não permite cigarras desmoralizadoras.
O telemóvel toca repetidamente, e repetidamente lhe descarrego com o dedo silenciador; como um assassino contratado faz na vítima – friamente; sou um snooze killer.

A mulher-a-dias, romena com ar de estalajadeira da Idade Média, inicia o seu lufa de espanador e parafernália de máquinas de lavar tudo e mais alguma coisa.
Infelizmente a porta do quarto não é blindada e não tenho à mão a pistola silenciadora de Walther Matthau em “Hit Man”, nem um andar de altura suficiente para me suicidar, como Jack Lemon.
Dormir fora de horas é crime punível por lei, sobretudo pela lei do trabalho e do chefe.

Mas desta vez resisto, e programo mais uma elaborada desculpa para justificar o atraso matinal – uma inundação no prédio é variante ainda não testada, e até certo ponto verosímil, porque a probabilidade de alguém ter uma inundação no prédio durante a vida é alta, e apesar dos meus 30 e tal anos, nunca tivera que pegar em baldes para salvar a alcatifa, a não ser uma vez em que, podre de bêbado, peguei fogo ao sofá com um cigarro, e acordei quase imolado em fogo, como um suicida palestiniano.

Adio sempre aquele momento de racionalidade forçada, o serviço de despertar obrigatório. Como invejo os animais, que apenas se submetem à tirania dos seus relógios biológicos. Caçar, comer, dormir, foder e fugir.
Tudo a horas marcadas pelo organismo.
A mim apetece-me fugir para sempre nos lençóis, fazer uma apneia de sono e percorrer aquele vale branco, imaculado e tépido, como um Rasmunssen do Ártico, até ninguém se lembrar de mim, submergir-me num lago gelado do esquecimento. Apagar-me na alvura do linho. Os lençóis como metáfora do meu desaparecimento físico! Parece-me que já estou mesmo a precisar de um café forte e odoroso.

Sou um animal pré-programado e obediente. Apenas espero aquele momento em que o cérebro em tom imperativo de sargento-praça emita a voz de comando - Vá levanta-te, são horas! – E, em que o corpo, de mau grado, demora a cumprir a ordem e se distende num espreguiçar de revolta submissa, como que anunciando que irá mais uma vez acatar a ordem, mas que levará o seu tempo como um rebelde submisso e sem causa provável.
- Tudo leva o seu tempo.
Gosto desta ideia da tranquilidade paciente. É como a cicatriz que desenha no corpo a marca da faca, mas apaga a dor do esfaqueamento.

Os olhos semicerrados como as persianas vão-se acostumando à penumbra e à bruxuleante composição de luz sobre os objectos do meu quarto.
Na escrivaninha um porta-jóias sem jóias expõe-se ao dramatismo central da luz da manhã, dura e fresca.
Fecho de novo os olhos e recebo a luz difusa da janela aberta de Vermeer.
Dois homens e uma mulher com copo de vinho, um deles de cabeça apoiada no cotovelo que jaz sobre uma mesa de iguarias, parece aborrecido e sonolento.

Fica na sombra austera de um quadro negro e sujo em que a velha matrona retratada manda uma esguelha recriminadora ao segundo homem. Este curva-se numa vénia melífula sobre o corpo da mulher de vestido cor de laranja que está sentada com um copo de vinho na mão.
O sedutor ampara cuidadosamente a mão da rapariga, fingindo suster na gravidade o cálice de branco que ela ergue. Não parece ainda uma mulher feita, apenas uma debutante nos jogos do amor. Graceja-lhe algo por entre a voluptuosidade da bigodaça, inclinada com luxúria sobre o seu decote.
A rapariga sorri vagamente.
Um sorriso perdido e lúbrico, de quem aceita o galanteio e se entretém com a corte de fiéis que mantém reféns com uma promessa vaga e não consumada de cópula.

Ela olha para o espectador, para fora do quadro, insinuando a possibilidade do amor, como muitas mulheres fazem disfarçadamente, encostando o queixo ao ombro dos amantes ou maridos, mas levantando o olhar predador e de promessa até ao espectador, como num quadro deliciosamente canalha de Vermeer.

Abro de novo os olhos, e ela lá está.
Todas as manhãs, com a ingénua malícia do seu olhar, convidando a partilharmos um leito de lascívia e traição.
Comprei aquela reprodução de má qualidade numa feira de arte em segunda mão no Cais do Sodré, porque gostei do conjunto levemente dissoluto e hedonista, e decidi colocá-lo no quarto, bem em frente da cama de casal, que partilho há dois anos com a mulher que acorda mais cedo do que eu.
Ela nunca gostou do quadro do Vermeer. Não faz mal, eu também nunca gostei de acordar cedo.
Acho que as mulheres não percebem muito de homens e da complexidade da condição masculina, mas pelo menos intuem-na.
Ela sempre desconfiou que a jovem putinha de Vermeer era a amante oculta que partilhava o nosso quarto de casal, e que se corporizava na minha imaginação adúltera com requintes de cortesã experiente no fellatio-despertador.

Um quadro de Vermeer sugestionar a masturbação pode parecer uma erudição espontânea, mas para quem sofre de uma crónica erecção espontânea matinal como eu, diagnosticada pela sabedoria popular como a bem-aventurada e não raras vezes útil tusa de mijo, garanto que nesse caso, a imaginação visual é altamente estimulada pela malícia desta personagem de Vermeer.
Não é que precise de um estimulante visual, porque felizmente a minha imaginação onanista está em plena forma.
Estou totalmente de acordo com Woody Allen quando defende as vantagens da masturbação. Em primeiro lugar podemos ir para a cama com todas as mulheres que a nossa efabulação e memória visual consigam deitar a mão, desde a vizinha do lado, à mulher do patrão, passando pela sex-symbol da moda, ou até sex-symbols fora de moda - já mortas ou quase cadáveres.
É admirável que um homem feito tenha no seu cadastro punheteiro desde a Anita, Betty Boop ou Milady do Dartacão, e ainda Marilyn Monroe, Rita Hayworth, Faye Dunwhay, Raquel Welch ou Sofia Loren.
Já imaginei tórridas aventuras sexuais com todas elas. É um mundo de oportunidades sexuais que ainda por cima dispensa a maçadora sedução, o jantarinho romântico, ou um copo lá em casa, com Chet Baker no CD para humidificar o grelo.
Nesse mundo perfeito, somos um Deus galanteador, que se serve do seu harém de prazer, a seu bel-prazer.
O romantismo da pívia está no seu feroz individualismo. O punheteiro não satisfaz a sua pulsão sexual com a mão porque não tem alternativa (bem, nem sempre), fá-lo pela tensa libertação que esse exorcismo permite, fá-lo desvendar no subconsciente os segredos dos demónios de saias que o povoam.
Fá-lo para saciar um desejo imenso, insaciável, inesgotável.
É como a vida, quando esta não satisfaz pede-se à imaginação para inventar outra.
De qualquer forma, hoje não tenciono masturbar-me na cama. Não tenho papel-higiénico à mão para me limpar, e se agora batesse uma, seria obrigado a levantar-me, e isso é a última coisa que me apetece fazer.
Também estou tão azamboado – acho que o vinho tinto de ontem era bom, mas era demasiado bom – e ainda estou invadido por aquele torpor que o vinho deixa como lembrança. A cabeça dói-me, e mesmo que se deitasse ao meu lado a Mónica Belucci, seria incapaz de lhe tocar. Aliás, essa não seria uma má desculpa para o meu chefe – Eh pá, nem imagina, então não é que a Mónica Belucci foi lá a casa hoje de manhã pedir sal!
São agora 9.45h, há mais de uma hora que resisto ao cérebro e ao telemóvel. Espeto mais um balázio de silenciador na nuca do Nokia, e viro-me para o outro lado, dando costas à janela e ao sorriso da putinha de Vermeer.
Acho que preciso de dormir mais um bocado, notifico traiçoeiramente o cérebro. Por favor deixe mensagem após o bip!
Agora já estou naquele transe hipnótico do REM. É segundo dizem os especialistas, uma boa altura para sonhar. É um sono leve e meio neurótico, em que as imagens dos sonhos passam tão rapidamente como videoclips da MTV.
(continua, se for caso disso)

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