4/05/2006

Chupando dropes de anis I - A sede do mal

Iluminação do inferno



Um homem que queira mutilar-se está maldito, não é verdade? Creio-me no inferno, logo, estou lá. (…) – Mais tarde, as delícias da maldição serão mais profundas. Um crime, depressa!, possa eu cair no vazio, em nome da lei humana
Arthur Rimbaud, “Uma temporada no inferno”



















A luz é a matéria-prima do cinema, a sombra a sua poética. Touch of Evil (A Sede do Mal - 1958) de Orson Welles é um filme que se desenha nessa sombra, nesse território de angústia, de maldição, entre o claro e o escuro, explorado de forma inebriante e até exibicionista por Welles, nesta obra-terminal do “film noir”, género que durante duas décadas marcou o cinema americano “alternativo” aos grandes estúdios e que gravou a sua marca genética em sucessivas gerações de realizadores.

Foi precisamente Orson Welles um dos “pioneiros” da chamada estética “noir”, com o seu “Citizen Kane” (1941) em que o dramatismo da iluminação “chiaroscuro” os ângulos de câmara distorcidos, inspirada no expressionismo alemão da década de 20 (de Fritz Lang a Murnau), e a secura e estilização dos diálogos naturalistas ao timbre de Heminghway, produzem uma inovadora linguagem artística que iria marcar muita da produção “B” dos estúdios americanos nas décadas de 30,40 e 50.
Dificilmente “Citizen Kane” pode ser catalogada como um “film noir” típico, mas ele introduz uma atmosfera e um virtuosismo técnico que passariam a ser seminais para a própria identidade do “film noir” que teve em cineastas como Nicholas Ray, Robert Aldrich, Jacques Tourneur, Anthony Mann, os seus mais originais e profícuos criadores; isto para não falar de Fritz Lang, o mais influente cineasta da primeira metade do séc. XX que com a sua obra “Matou” (1931) terá “inventado” o “film noir”, que exportaria para a América com “Fury” (1936) e “You only live once” (1937).
O legado de Lang ao “noir” é a sombra, não só a estética, mas a sombra humana, a violência e a psicologia do crime que passariam a ser o repasto desencantado e cínico da linguagem “noir”, e que encontrariam em escritores policiais “hard-boiled” como Dashiel Hammet ou Raymond Chandler, os mais convincentes “narradores”.

O noir era portanto um caldo de referências, e Orson Welles era ele também um explosivo concentrado de erudição, um shakespeariano na mais pura acepção da palavra (com 14 anos encenou a peça “Júlio César”).
Acima de tudo, Welles era um “experimentalista”, um insaciável curioso e provocador, e por isso mesmo, o filão do cinema “noir” e os seus arquétipos não o interessaram, excepto por razões instrumentais como em a “The Lady from Shangai” (1948).
Curiosamente foi Welles a escrever o epitáfio do “film noir” clássico com este “Touch of Evil”, que marcou o seu regresso aos EUA, dez anos depois de ter realizado o tremendo “flop” comercial que foi “The Lady of Shangay” (1948), que lhe valeu um bilhete de ida sem volta, pago pelo sistema dos grandes estúdios, que via em Welles um génio funesto e perigoso, capaz de dilapidar fortunas e orçamentos.

O regresso do “proscrito” Welles a Hollywood terá sido uma das poucas coisas boas que o actor Charlton Heston fez pelo cinema. Na época, Heston era uma “big star” e foi ele a impôr ao produtor de Séries B para a Universal (Albert Zugsmith) o nome de Welles para realizar uma adaptação de uma novela policial de Wit Masterson intitulada “Badge of Evil”.
Zugsmith teve mesmo de engolir o “príncipe anarca” para contentar a sua vedeta, e foi assim que Welles pegou na novela medíocre, reescreveu com Paul Monash todo o argumento e redesenhou a concepção do filme com novos cenários e um elenco “à sua imagem”, onde se incluem alguns actores-fétiche do cineasta como Joseph Cotten (o médico legista), Marlene Dietrich (Tanya) ou Akim Tamiroff (Joe Grandi).
Em a “Touch of Evil”, Welles conduz-nos numa descida ao inferno, às trevas, à essência subtil do mal, e nesse sentido é um dos filmes mais shakespearianos e belos desta autêntico Príncipe da Renascença, que se crava na história do cinema como uma obra apoteótica do “film noir”; uma obra barroca, no sentido que Jorge Luís Borges lhe dá, citado por Cintra Ferreira nos cadernos da Cinemateca: “Chamarei barroca a etapa final de qualquer arte, quando ela exibe e dilapida os seus meios”.

Exibicionista e excessiva esta obra de Welles estoira com todo o orçamento do filme logo na primeira cena, que constitui o mais longo e lendário plano-sequência da história do cinema. O movimento de câmara ininterrupto dura três minutos e começa com a colocação de uma bomba no porta-bagagens do carro de um empresário americano que regressa a casa depois de uma noite de pândega com uma stripper mexicana, numa pequena e sórdida cidade fronteiriça entre os EUA e o México.




O movimento da câmara acompanha o carro e oferece-nos uma visão tenebrosa daquelas ruelas escuras, povoada de criminosos, prostitutas e “habitantes das sombras”. A música, com uma espécie de rufar diabólico de tambores acentua a tenção crescente à medida que o carro vai seguindo a sua marcha lenta e se cruza com um casal em lua-de-mel - Vargas (Charlton Heston) um polícia mexicano incorruptível e a sua jovem e atraente esposa americana Susan (Janet Leigh).
A câmara e a atenção do espectador desviam-se para o casal, que se beija, até que o plano-sequência termina abruptamente com o som em “raccord” da explosão do carro e as imagens do veículo a arder.
Este homicídio despoleta todo a trama em que Vargas terá de colaborar com o seu “homólogo”, e a sua “bête noir” do outro lado da fronteira, o Detective Hank Quinlan, um polícia álcoolico, corrupto e racista, uma composição colossal do próprio Orson Welles. Totalmente desfigurado pela obesidade, parece um cadáver inchado, devorando barras de chocolate e movimentando-se a custo sobre a sua bengala. Quinlan é a personificação do mal e o filme é uma descida ao seu inferno interior, uma visita aos seus demónios escondidos e que se manifestam na forma manipuladora como tenta desvendar o crime da bomba no carro, e simultaneamente, ocultar os seus próprios crimes (a cena do homicído de Joe Grande é arrepiante, graças à colocação da câmara por cima da janela da porta, permitindo-nos apenas ver o terror estampado na face de Joe Grande e escutar os grunhidos homicidas, como se fosse um javali chafurdando na sua vítima).
Com uma iluminação ferozmente “chiaroscuro” e planos dramáticos (Quinlan é sempre filmado de um ângulo inferior), Welles mergulha nos arquétipos do film noir – o crime, o passado que volta para nos assombrar, a violência e a corrupção, para nos oferecer um festim de paranóia e ilusionismo.
Porque é isso que Welles é acima de tudo, um prestidigitador que subverte e parodia cinicamente as emoções humanas, lançando-nos no abismo do medo e nas garras dos nossos próprios demónios interiores.
Uma espiral de crime e castigo num filme em que a cena inicial e a cena final se completam de forma perfeita.

No atoleiro sombrio as feras humanas devoram-se, num “mise en scéne” próximo da visão de Welles do final de Rei Lear, uma decadência simbólica em que os magníficos e exuberantes recursos estilísticos de Welles têm também um papel narrativo e um contêm o anúncio de um homicídio premeditado – a morte por asfixia do “film noir”.
Muitos filmes sombrios foram feitos depois deste, mas em nenhum outro o mal voltou a ser iluminado desta forma.

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