7/18/2005

O burro não usa Chanell 9, mas gostava!

Dou-te um coice em troca de um fardo de palha, larila laralá!

«Preparava-se o Padre Martinho para ir buscar os salmos para a missa da Procissão ao Anjo da Guarda, que estavam guardados na sacristia de Cebolais da Serra, aferrolhados com a vitualhas no andor, e para grande escandaleira geral, os salmos tinham levado caminho. Foi para lá um reboliço, meteu a guarda e tudo.
Ninguém deu conta do sumiço que levaram os salmos da paróquia que já eram do tempo da Maria Cachucha. Ainda se suspeitou do sacristão, que era amigo da pinga, e de outros ratos de sacristia, prontamente defenestrados a 501 Forte, mas não se chegou a nenhum desenlace à Hércule Poirot.
O Padre armou para lá um escabeche! Acusou a Comissão Fabriqueira de ser uma corja de gatunos, de meterem a unha nos pertences de Deus Nosso Senhor.
O Casimiro, da Comissão Fabriqueira, que não é homem de se ficar, e bruto que nem um quarteirão de casas, ainda prometeu chegar a roupa ao pelo do padre, «A batina que lhe alcofe os açoites, que eu vou aos cornos do cabrão do abade».
Os ânimos exaltaram-se ainda mais, quando, a seguir, foram os evangelhos e o missal a esfumarem-se do centro paroquial.
O Padre Tomé ia lhe dando o badagaio com a apoplexia. Num ataque de cólera, bradava à varanda do centro paroquial: «Grandessíssimos filisteus, sarracenos d`um raio, terroristas do catrino, ratoneiros do Diabo».
Ameaçava a excomunhão colectiva, mas aquela terra de meio alqueire de habitantes, quase todos sexagenários e humildes lavradores, entreolhava-se desconfiada… afinal não havia memória de larápios na aldeia, a não ser uns pilhas-galinhas que por pilhéria iam depenando uns galinheiros mais esconsos.
Mas as misteriosas desaparições continuavam, depois da sacristia, o misterioso ladrão continuava a sua rapinagem bibliófila. A vítima seguinte foi o Centro de Dia, de onde se eclipsaram uma série de clássicos doados pela Fundação Hermenegildo Espírito Santo, que incluíam “As Pupilas do Senhor Reitor”, “A arte do amor”, “A Eneida”, os três volumes de “Dom Quixote de La Mancha”.
Também a notável biblioteca militar do Major Correia não resistiu ao Cavalo de Tróia do saque, e lá marcharam “Guerra e Paz” de Tolstoi, “A Arte da Guerra” de um general chinês, “Princípios da Guerra” de Clausewitz. Nem a colecção do místico brasileiro Paulo Coelho, com que a Lucinda do Posto de Turismo matava as horas sem turistas, (que eram quase todas), escapou à mão invisível do amigo do alheio.
A aldeia andava aterrorizada, e mesmo os analfabetos, escondiam no colchão os livritos de cóbois que os netos lá deixavam nas férias, como se fosse o seu mais valioso espólio. Até que um dia, o meliante foi exposto à ira da terra, despojada dos seus parco património literato.
Um casal de turistas ingleses, andava a tirar retratos ao “very tipical” da aldeia; ao fontanário, ao pelourinho, às velhotas estacionadas na soleira da porta a desfiarem dois dedos de conversa, enfim, os camones andavam a dar aquele “tour” de Nikon em punho para mostrarem nos chás dançantes para reformados lá em Birmingham. Nisto aparece em cena no largo do Pelourinho, a dar ao laré pela rua do castelo, o burrico do Ti Manél Xá.
O burro, ufano, escoriava com elegância, ziguezagueando a cauda de contentamento, lançando numa azáfama de cabriolices o mosquedo que tradicionalmente cortejava a escatologia bestial do equídeo.
Encostou as beiçolas ao tanque da fonte para sorver uma golada de água e, ao que parece, a sofreguidão desarranjou-lhe os intestinos, tendo ali mesmo largado uma valente póia, depositada aos pés dos bifes.
- Look darling, a Pop Star – disse a inglesa sardenta com a sandália apontada em direcção ao meticuloso montículo de bosta, esculpida pelo pandeiro incontinente do burro.
Referia-se a camone aos dejectos da capa de um livro de uma escritora de sucesso, que despontava nos preparos intestinais da besta.
– What´s the problem - Virou-se o asno poliglota, que aprendera inglês num livro que furtara a um velho Lorde da Câmara dos Comuns, hospedado no Turismo de Habitação, contrariando assim a velha tese cabalista de que burro velho não aprende línguas.
– This book stink`s! – Justificou o burro, visivelmente embaraçado com este seu descuido nauseabundo.
Estava então desvendado o mistério dos livros desaparecidos e desmascarado o larápio, precisamente o asno Lúcio, homónimo de Lucius Antonius Rufus Appius, pretor romano que sentenciava favoravelmente a quem lhe pagava a maior tença, e cujas iniciais (L.A.R.A.) passaram a designar os amigos do alheio, conforme se prestou a explicar ao inspector da Guarda Republicana da Soalheira, o burro Lúcio, quando confrontado com tão graves acusações de ladroagem bíblica.
Como o Código Penal não previa punição para crimes cometidos por quadrúpedes, o único castigo que a gula bibliófila do burro Lúcio mereceu, foi a valente sova com pau de cerejeira, aplicada pelo seu dono, o Ti Manel Xá, sob os auspícios do Santo Ofício do Padre Martinho, para quem as saraivadas no lombo do pobre Lúcio, constituíam autêntico Auto de Fé.
- Ah! Jumento dum cabrão, queres desgraçar-me. Guloso dum caneco, que não vales um corno para trabalhar, só queres é encher a mula. – Espigava-se o Ti Manel Xá, enquanto zurzia o pêlo ruço de Lúcio.
- Chegue-lhe, Manel, chegue-lhe com força a esse jumento excomungado – Invectivava o Padre.
- É preciso disciplinar esse pedaço de asno, Manel. Chicote nesse anarquista – Urrava o Major Correia.
Aquilo foi um correctivo público que serviu para apascentar os exaltamentos da populaça e aliviá-los dos esmorecimentos de alma, como se fazia desde tempos ancestrais para expiação das más consciências. O pelourinho rejubilava, depois de um século de branduras e de poses forçadas para a objectiva dos turistas, lá voltava o largo a ser patíbulo de justiça.
Com sorte ainda voltavam os enforcamentos. Um que fosse em memória dos bons velhos tempos.»

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