7/18/2005

E o Burro ainda estava em Pé!

"E o Menino de Deus ponha a sua mão:
Que eu tenha quinhão
Na missa, como os que lá vão.”



- E lá que tive o meu quinhão, lá isso tive, mas foi de porrada da grossa, que nem o pulguedo se aguentou nas canetas.
Arreneguei a fé, mas não foi só por causa do chicote. Na enfardadeira de livros com que me fui lambuzando, havia para ali muita iguaria de fazer crescer água na boca e, lentamente fui-me afastando da fé, porque tudo o que manjava, ficava retido aqui na cachimónia e ia-me afastando dos ínvios caminhos do senhor. A comezaina fez-me espertalhão e vivaço,e isso são qualidades pouco compatíveis com o exercício espiritual da fé, porque quanto ao terreno, é o que para aí se vê...
Mamei uns livritos de um brasileiro alquimista, mas davam-me gases, era cada peidaço que até as latadas se mandavam ao chão, e acabei por me virar para jovens autores portugueses. Umas poesias trinca-espinhas e magricelas, sempre na lamúria, que não matam a fome a um pisco, e uns de prosa mais grossa, mas indigestos que nem morcelas da Sertã. Só embutidas a Alka-Seltzer.
Aquelas patuscadas andavam a dar-me a volta à tripa, e cagando de alto acabei por ser apanhado pelo cão danado do padre e mordido pela chibata do velho embusteiro.
- Que coisa, que coisa menino ! – cogitava o porco Noé, cofiando pensativo o focinho – E agora, voltas a marrar com os cornos na palha?
- Nem que a vaca tussa – Respondeu o Lúcio – Não vou dar esse prazer ao velho hecatrônquiro nem aos patifórios da aldeia. Não volto a tocar na palha. Que já sei bem para que me enchem o bandulho. É para puxar a nora e acartar com os cestos de bagalho para o alambique, que é isso o uso que temos os animais. Omne vivum ex ovo, que é como quem diz todo o ser vivo provém de um germe.
- Malesuda fames, que é como quem diz, a fome é má conselheira, Virgílio, Eneida, VI, 276 – Ripostou o porco Noé, enquanto soltava uma sonora farpola, em virtude das couves do almoço.



–Também mordes latim? – Averiguou o atónito asno.
– Só aquele que aprendi. Costumo dizer que o meu pior erro foi ter aprendido a ler - Condescendeu em entoação mística o bácoro.
- Mas olha que te enganas quanto à larica. Eu não passo fome, porque a bondosa Dona Maria das Dores, vai-me trazendo às escondidas uns clássicos da biblioteca, não é bucha farta-brutos, mas vai dando para os gastos. A Odisseia de Homero deu-me para a semanada inteira. – Explicou o asno.
- Mas o que pensas fazer? A despensa bibliotecária há-de começar a tinir… – Inquietou-se Noé.
- Era sobre isso que te queria falar, precisava do teu conselho amigo. Tu que és porco de engorda, mas que já viste mais Invernos do que muito sobreiro. Como é que se sobrevive à crueldade dos homens, porque no teu caso a máxima de matança pascoal devia ser mors ultima ratio, que é como quem diz, a morte é a razão final de tudo, mas ainda cá andas e cada vez mais gordo. – Quis saber o asno, agitando interrogativamente a cauda e pondo as orelhas em sentido.
- Para nós animais, vulnerant omnes, ultima necat, que é como quem diz ferem todas, a derradeira mata, que é uma velha máxima latina inscrita nos antigos matadouros municipais. Para nós suínos de criação, nada é mais verdade. O segredo da sobrevivência está em enganar e ludibriar a crueldade humana. – Atalhou Noé.
- Hoc opus, hic labor est, que é como quem diz, aí é que está a dificuldade …– Suspirou o asno.
- Esta história não tem uma zokla, como no Panchatantra, nem sequer dela se pode retirar um ensinamento zen... É a mais pura lei de sobrevivência animal, e cada qual tem de saber encontrar o seu caminho da salvação. Paupertas impulit audax, que é como quem diz a pobreza audaciosa me impeliu, verso de Horácio, Epístolas II, 2, 51. - Disse o bácoro com propensão para o misticismo oriental, desde que não implicasse práticas ascéticas.
- Mostra-me o caminho, amigo e mestre, que res sacra mister, ou seja, é coisa sagrada o desafortunado. – rogou Lúcio, citando Séneca.
- Pois bem, no meu caso, depressa identifiquei as fraquezas humanas que poderia explorar, e tratei de pensar como um homem. É nessa lógica caótica que devemos buscar a luz. Como tu sabes, o Ti Manel Xá é um grandessíssimo invejoso, que cobiça a fortuna do vizinho, o Ti Patacas. No ano em que era suposto ir à faca, combinei um estratagema infalível com o Job, o bácoro do Ti Patacas. Ambos começámos a lançar as sementes da discórdia no coração amesquinhado dos velhos, caçoando com a gordura do bácoro do vizinho. Já viu Ti Manel Xá o javardo do Ti Patacas, aquilo sim é que é um porco, dá para ali umas libras valentes de carne, já mal se pode alevantar. Por sua vez o Job mantinha a sua parte da combinação, urdindo a inveja do Ti Patacas – Um senhor bácoro, algumas cinco arrobas de chouriço, presunto e fêveras, aquilo dá para alimentar um batalhão de infantaria. – Tanto fomos fazendo a cabeça aos velhos que eles tiveram uma pega das antigas, empenhando a honra numa apostilha – O meu porco é maior que o teu! – Foi a nossa sorte grande e terminação, a partir daí passámos a ser empanturrados à grande e à francesa, à medida que também íamos engordando o orgulho dos nossos amos. Deixámos de ser porcos de criação, para passarmos à graciosa condição de machos de procriação.



A nossa vida é encher o bandulho e cobrir as porcas. Nada mau, hein ? Eu e o Job vamos provavelmente ser os únicos membros da espécie suína do distrito a morrer de velhos. Carpe diem, meu amigo, carpe diem. – Concluiu Noé, visivelmente satisfeito com a esperteza que lhe poupara um destino cruel como enchido num cozido à portuguesa.
Deixemos então erudita fábula do curral, nuns desvarios de La Fontaine e de latim mais morto do que vivo, que teve o condão de lançar na bestunta de Lúcio de mirabolantes projectos de vingança, enfiando um cavalo de Tróia pelo rabo adentro daqueles que o desprezaram e maltrataram.»


Hi, hi, hi isto hoje é a fartazana, uma burrada das grandes, olari!

3 comentários:

Anónimo disse...

epá, tens mesmo orgulho em ser burro. isso é burrice crónica?

Anónimo disse...

Gostei muito deste diálogo improvável e sobretudo do estilo de escrita que mistura um discurso coloquial e quase terra-a-terra, com um verdadeiro esculpir da língua portuguesa. Temos escultor de palavras e eu tenho mais um blogue a não perder de vista, continua p.f.

Anónimo disse...

de segur importas-te de coloquialmente ires lamber o cú do burro na página 74 do dicionário burretimológico do pelejão? Ele está à tua espera: precisa de rusticidade, de uma citação e de uma mamada de asna.