LOJA DE ELECTRODOMÉSTICOS
Corpo frio em câmara ardente
Passava os fins-de-semana na loja de electrodomésticos do Colombo a galar os imponentes e impenetráveis frigoríficos.
Admirava-os naquela sua altivez marmórea.
Sentava-se numa cadeira de baloiço insuflável que comprara na Nauticampo para as férias em Albufeira, e ali se abandonava longas tardes, a olhá-los, numa devoção cega e reverente, com o catálogo da Ariston deposto nas mãos, como se a partitura de hossanas nas mãos de uma velha beata em desafinanço de Te Deum se tratasse.
Silenciosos, esfinges erectas em rígida coluna militar, os frigoríficos pareciam
solenizar-se hirtamente com a atenção que lhes era dedicada. O homem anónimo - como todos os homens o são para os outros - observava-lhes as formas, o design , a estrutura das pegas, a combinação de cromados e dos painéis de alvura cintilante.
Conhecia-os detalhadamente - as suas diferenças indiferentes, os seus caprichos frívolos, os trejeitos de fabrico...
Depois, se ninguém estivesse a ver, gostava de lhes passar a mão pela frigidez albina, e explorar as inúmeras gavetinhas, cubículos, sacros orifícios, como quem vagueia no serpentear lento de dedos cupidescos sobre o corpo de uma mulher nova, de pele aveludada, púbis sedoso e mamilos dardejantes ao céu da boca do desejo.
Perto deles, respirava a solidão e a tranquilidade imensa dos fiordes.
Perto deles, o tempo não era mais do que um momento congelado, estático.
Sentia-se próximo dos frigoríficos, na exacta medida em que se afastava com repulsa dos outros homens.
Tanto tempo passava junto deles que foi despedido por um patrão de sorriso gelado, abandonado por uma mulher de amor frígido. Deixou as amizades congeladas numa covette, até que, um dia se escondeu num recanto da loja de electrodomésticos, camuflado entre os micro-ondas de última geração e a prateleira das varinhas mágicas Moulinex.
Esperou que o segurança da Agência Pinkerton de bigode aos tropeções
adormecesse numa sesta vigilante, ligou a ficha de electricidade de um gigantesco Siemens com quase dois metros de altura, que cerimoniosamente lhe escancarou a porta. Despiu-se, retirou a gaveta dos vegetais e entrou.
Uma luz sumiça e hesitante desvaneceu-se na sombra que a porta do frigorifico, com a prateleira de ovos à proa, lhe projectava nas covas felpudas da omoplata.
Passadas algumas semanas, um jovem casal que procurava um frigorífico maiúsculo para guardar os iogurtes magros dela, as cervejas dele, abriu a porta do Siemens, encontrando o homem nu esculpido em bloco de gelo, com um sorriso fresco e jovial estampado nos lábios roxos.
Olá, olá, e a morte sorri.
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